Um puxa a cadeira ali; o outro, acolá. Alguém traz um tira-gosto caprichado regado a uma cervejinha bem gelada. A roda só aumenta. E de repente começa a batucada. A cena se repente praticamente todos os dias no Cruzeiro, uma das cidades mais antigas do DF e notoriamente conhecida como reduto de cariocas, a maioria militares, funcionários públicos e seus familiares transferidos na época da construção da nova capital. Seja nos botecos, nas praças, nas calçadas, nos quiosques, na feira e, claro, na quadra da mais tradicional escola de samba de Brasília, a Associação Recreativa Unidos do Cruzeiro ou simplesmente Aruc, o samba é rei.
Alguns espaços do Cruzeiro são tidos como redutos absolutos na cidade. Um dos mais antigos e conhecidos é o Bar Gandaia, na Feira Permanente do Cruzeiro. Há duas décadas, o local de propriedade dos cariocas Jair do Apito e da mulher, Neuzinha Gandaia, serve como ponto de encontro dos bambas não só cruzeirenses, mas de outros locais do DF. Um samba sem compromisso e descontraído que reúne gente, como Idnílson Nascimento, que durante 12 anos foi Rei Momo do Carnaval de Brasília. Ele entrou no samba por acaso e dele nunca mais saiu. ;Nunca liguei para isso. Era professor de caratê e acabei me tornando Rei Momo. Hoje, eu amo o samba;, diz. O Gandaia é um dos templos para zelar o amor ao ritmo. ;O Cruzeiro é o lugar do samba em Brasília, por isso faço questão de frequentar as rodas e os pagodes daqui, principalmente, no sábado. Junta a música, com a feijoada e um chope gelado. Não tem nada melhor;, assegura Idnílson.
Quem também marca presença nesses encontros é o jornalista, funcionário púbico e sambista Potoka. Fluminense de Nova Iguaçu, é apresentador do programa de rádio QG do samba, na Cultura FM. Assim que termina a atração radiofônica, ele segue rumo ao Gandaia. ;Batemos ponto sempre aqui. É uma coisa entre amigos, de gente de ligada ao samba não só do Cruzeiro, mas de todo o DF;, afirma. Esse é o caso de Paulo Becker, mais um sambista carioca radicado na capital federal. Apesar de morar no Guará, não deixa de frequentar as rodas de samba cruzeirenses. ;Os amigos se reúnem, começa uma batucada, um bom bate-papo, que é fundamental. E a nossa roda é aberta para qualquer pessoa. É só chegar e se enturmar;, ressalta.
Um outro ponto de destaque no Cruzeiro é o Círculo Operário, que, às sextas-feiras, agrega sambistas e pagodeiros numa autêntica roda de samba, sem microfone ou outro equipamento ligado. Só no gogó e no cavaquinho. ;Fica bem mais legítimo. É um grupo de amigos que começou a se reunir nos quiosques e a roda só foi aumentando. Por isso, estamos aqui nesse espaço. Tem dias que reunimos até 500 pessoas. Acho que essa coisa do samba de raiz, do pagode de mesa está ressurgindo com força aqui no Cruzeiro;, comenta Oton Lauro , o presidente e organizador do Círculo do Samba.
Os artistas do gênero que se apresentam no Cruzeiro também sentem esse movimento. O grupo de samba e pagode Liberdade de Sonhar Cavaleiros de Jorge foi criado há 16 anos e é formado por cariocas e brasilienses. O percussionista e vocalista Rogério conta que não há dúvida de que o Cruzeiro é uma referência nesse ritmo no DF e, por isso, faz sempre questão de se apresentar por lá. No entanto, revela que, apesar do grande número de admiradores e adeptos na cidade, muitas vezes, faltam palcos para o grupo se apresentar. ;A gente tem público aqui, uma grande aceitação, mas, muitas vezes, falta espaço. Então, acabamos improvisando, tocando em festas particulares, na própria quadra da Aruc, nos quiosques. Mas, apesar disso, o samba está aqui sempre vivo. Seja onde for;, frisa.
PROGRAME-SE
1 ; Aruc:
Criado há 16 anos, o grupo Liberdade de Sonhar Cavaleiros de Jorge faz samba pelas ruas da cidade
# Área Especial n. 8 , Cruzeiro Velho, 3361-1649
# Ensaios da escola e apresentação do grupo de pagode Di Propósito até 11 de fevereiro
# Quinta: das 19h às 22h
# Domingo: das 17h às 22h
# Entrada franca
2 ; Círculo Operário Cruzeiro
# SRE/S Área Especial, Lote 9, Cruzeiro Velho, 3234-1043.
# Projeto Círculo do Samba todas às sextas, a partir das 22h.
# Entrada: R$ 5
3 ; Bar Gandaia:
# Feira Permanente do Cruzeiro, Box 70/71, 3234-2954
# Pagode de roda todos os sábados a partir das 14h
4 ; Celva
# Área Especial, 9, Cruzeiro Velho, 3361-6131
# Rodas de samba e pagode devem retomar depois do carnaval
; Terreiro do samba
A velha quadra da Aruc enche-se até as vésperas do carnaval com pagodes e ensaios que começam às quintas
;O jeito de ser do Cruzeiro é o jeito de ser do carioca. Aqui, se reproduziu um pouco da origem, dos costumes e da cultura do Rio. Por isso, é natural que o samba fizesse daqui a sua grande manifestação. Aquela coisa de botar a cadeira na porta de casa, um outro começa a fazer um churrasquinho, os vizinhos vão chegando, é algo muito comum, especialmente nos subúrbios do Rio de Janeiro. Nada é mais carioca em Brasília do que o Cruzeiro;, acredita o jornalista Moacyr Oliveira, o Moa, presidente da Aruc.
Aliás, a quadra da escola é um dos principais pontos de encontro dos bambas não só do Cruzeiro, mas de outras regiões de Brasília. Todas as quintas e domingos, até o carnaval chegar, quando a Aruc vai apresentar no Ceilambódromo o enredo Brasília mística, os mistérios da capital dos sonhos, são realizados ensaios abertos ao público. Quem sempre abre o evento é o grupo de pagode Di Propósito, que ajuda a esquentar os tamborins antes da entrada da bateria da azul e branco brasiliense.
Segundo Moa, os ensaios costumam reunir, especialmente, às vésperas da folia, 3 a 4 mil pessoas. Gente de todas as idades e classes sociais. Levados pela história e, principalmente, pela tradição da agremiação carnavalesca. ;Uma das primeiras manifestações cariocas no Cruzeiro foi justamente a criação da Aruc em 1961 e isso se reflete ainda. Até hoje, somos uma referência de samba não só no Distrito Federal mas em outros lugares. Por aqui, já passaram os grandes nomes do samba e do pagode da velha e da nova geração como Jamelão, Nelson Sargento, Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, entre outros;, comenta Moa.
Vivendo há 10 anos em Brasília, as amigas cariocas Maíra Abreu, 23 anos, e Andressa Monteiro, 23 anos, são frequentadoras assíduas dos ensaios da Aruc e dos pagodes no Cruzeiro. Para elas, não há diversão melhor. ;Isso faz parte da nossa infância lá no Rio e aqui, nossas famílias, nossos pais cultivam o mesmo hábito. Quando não vamos em algum samba ou pagode, a gente acaba fazendo em casa mesmo, ou na casa de uns amigos. É meio de praxe;, comenta Andressa.
Para Maíra, esses eventos são uma maneira também de matar um pouco a saudade dos tempos em que viviam na Cidade Maravilhosa, mas, sobretudo, uma forma de fazer novas amizades e quem sabe até engatar um namoro. ;A gente adora samba, pagode. Está no nosso sangue, na nossa raiz. O ritmo e a roda acabam favorecendo com que role uma amizade, uma paquera. Isso é muito legal;, declara Maíra.
Outro que não abre mão de um tradicional sambinha é o cantor e compositor Fiola, 46 anos. Nascido em Duque de Caxias, mas radicado em Brasília desde 1980, ele vive em Taguatinga mas sempre frequentou o Cruzeiro. Vez por outra também dá as caras nos ensaios da Aruc. É comum Fiola chegar em uma roda de samba cruzeirense e acabar dando uma palinha. ;Isso é próprio das rodas de samba e pagode. Ainda mais quando estou entre amigos. A gente sempre prestigia. Tem aquele clima de congregação, de união mesmo. Nada mais carioca do que essa mistura de samba, pagode, futebol e um churrasquinho com os amigos, e aqui no Cruzeiro eles fazem questão, mais do que em qualquer outro lugar, de manter isso;, opina o sambista, que acaba de lançar o seu primeiro CD.
Voa, gavião
Em 2006, o historiador Rafael Fernandes de Souza finalizou a monografia de conclusão de curso sobre o Cruzeiro, cidade em que vive desde criança. Um ano depois, o trabalho realizado na faculdade se transformou em uma publicação, que aborda um dos ícones cruzeirenses: sua escola de samba mais tradicional. O livro Voa gavião, a trajetória da Aruc no samba, esporte e cultura, como o próprio nome diz, conta a história, os carnavais inesquecíveis, os eventos esportivos e culturais da agremiação mais famosa de Brasília e traz ainda curiosidades. ;Um dos fatos que mais me chamaram a atenção foi que durante muito tempo o Cruzeiro não tinha administração regional. Ele era vinculado ao Plano Piloto. Apesar de ter surgido em 1959, só em 1987 é que ganhou esse status de região administrativa. Até então, quem fazia esse papel de porta-voz da comunidade para reivindicar tudo era a Aruc. Ela era o canal das pessoas para pedir qualquer coisa;, conta Rafael, que também é o diretor de cultura da escola.
Outro aspecto curioso retratado no livro é com relação ao símbolo da escola: um gavião. Rafael Fernandes explica que isso é uma referência ao antigo nome da comunidade do Cruzeiro, conhecido como Bairro do Gavião, devido ao grande número dessas aves que habitavam o local nos primórdios da cidade. O historiador lembra também que o gavião é parente da águia, símbolo da Portela, que é justamente a madrinha da Aruc. ;Na época em que a escola surgiu realmente, tinha muitos cariocas no Cruzeiro, como os próprios fundadores, e então a cidade herdou um pouco dessa cultura carioca. Mas ao longo do tempo, com a valorização imobiliária do bairro, ele perdeu um pouco desses moradores que vieram do Rio. Hoje temos uma população mais transitória, com um maior poder aquisitivo e gente de vários estados também, especialmente nordestinos. Porém, ele permanece com algumas de suas características originais, esse lado meio romântico e o samba de roda muito fortes ainda;, opina.