O inusitado percurso de sete clássicos do cinema brasileiro (entre os quais o marco para as bilheterias Bonequinha de seda) é bastante revelador do empenho e da dedicação de uma série de restauradores cinematográficos. As fitas filmadas durante o chamado ciclo da Cinédia já estiveram, literalmente, debaixo d'água e ganharão, até o fim do ano, a eternidade em DVD e blu-ray. Criada oficialmente em 15 março de 1930, por Adhemar Gonzaga, a Cinédia, para além da importância como estúdio, se consolida também como empresa de preservação, a partir de iniciativas bem visÃveis nesse campo. "Com a enchente de 1996, em Jacarepaguá, o acervo de filmes pegou lama e precisou ser restaurado, num trabalho que está sendo completado agora, sem nenhum planejamento para coincidir com o aniversário", conta o restaurador Hernani Heffner, há 24 anos, atuante na Cinédia. Iniciada há três anos, a recuperação de comédias como Berlim na batucada (1944) e Estou aÃ? (1950) culminará com a exibição dos filmes, em março, no Unibanco Arteplex e no Instituto Moreira Salles (ambos no Rio de Janeiro). Mas o ciclo será ampliado, com sessões programadas para uma rede de 20 festivais de cinema, entre os quais o de BrasÃlia. Em dois projetos, que totalizaram investimentos de R$ 600 mil, o pacote de filmes resgata a obra de Moacyr Fenelon, quando da associação dele (entre 1948 e 1951) com a Cinédia. "Para o Estou aÃ?, por exemplo, fizemos uma reconstituição do que era o filme. A partir de quatro incompletas cópias (em 16mm) remanescentes, ordenamos o som e criamos novo negativo, tirando riscos e abrasões. O próximo passo será a passagem para uma mÃdia digital", explica Heffner, chefe do departamento de conservação do Museu de Arte Moderna (RJ). Professor de história do cinema da PUC carioca e da Fundação Getúlio Vargas, Hernani Heffner, que tem especialização em documentário, comemora outra empreitada, capaz de render um ano de trabalho: a digitalização de 100 mil documentos que integram o arquivo da Cinédia. "Para se ter noção, temos como objeto a constituição do maior arquivo de cinema do paÃs. O material (40% reservado ao brasileiro e o restante contemplando o cinema mundial) está agrupado em 167 arquivos de aço, cada um deles dotado de quatro gavetas", adianta Hernani Heffner. Compartimentos inteiros são reservados a personalidades do porte de Carmen Santos e Glauber Rocha. As raridades, igualmente, tomam conta do espaço. "Temos recortes de jornais e de publicações obscuras, tidas como desaparecidas. É o caso da Cine-Repórter, a mais importante do setor de exibição, entre 1935 e 1960. Publicamente, hoje em dia, só são encontradas publicações a partir de 1950. Aqui, nós temos recortes organizados. Com a fragmentação das informações em recortes, Adhemar Gonzaga destinava conteúdo ao local natural, em pastas temáticas", explica o restaurador. Fundador da empresa, atualmente conduzida pela filha dele, Alice, Adhemar (1901-1978 ) praticamente acompanhou o nascimento da sétima arte. Desde os 12 anos, ele recolheu os mais diversos materiais, num ritmo crescente, de recortes da imprensa diária a fotos, passando aos roteiros e as cartas, até a chegada à coleta de equipamentos. Ouça expicação sobre o processo de recuperação dos sete filmes. "Adhemar, ainda criança, chegou a batizar 'o primeiro arquivo', mas assustados, os pais, bem tradicionais, queriam ele no ramo da engenharia. O material chegou a ser destruÃdo, porém ele persistiu e criou, com referências desde 1896, um arquivo de atualização corrente, sob a atual coordenação de dona Alice Gonzaga", explica Heffner. A sistematização digitalizada dos dados coletados trará futuro suporte perene, sem a necessidade de manusear o original, e acesso gratuito. "A contribuição histórica para pesquisas, por meio da divulgação do material, é extraordinária", avalia o restaurador. Cartas originais Catalogadas na Cinédia, figuram as fotografias mais antigas do cinema brasileiro, em acervo que comporta raridades como as únicas imagens da comédia Paz e amor (1910). Orçada em R$ 300 mil, por meio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura (RJ), e apta à captação de recursos, a iniciativa (com perspectiva de conclusão projetada para março de 2011) lançará luz sobre registros escritos relacionados a figuras como a do fundador da Atlântida Moacyr Fenelon. O projeto trará ao primeiro plano correspondências de personalidades como Ary Severo e Jota Soares (realizadores atrelados ao ciclo do Recife) e Alberto Cavalcanti, cenógrafo e diretor brasileiro com trânsito internacional. Cartas originais de Humberto Mauro (Sangue mineiro e Ganga bruta) endereçadas ao então redator-chefe da revista Cinearte, Adhemar Gonzaga, também virão a público. "É um material fabuloso para o entendimento da formação do Humberto Mauro, das ideias cinematográficas dele e do processo de produção do ciclo de Cataguases", conclui Hernani Heffner, desde já, entusiasmado com outra futura ação - escrever parte da história da Cinédia, situada entre os anos de 1930 e 1951. As sete fitas Bonequinha de seda (1936) De Oduvaldo Vianna. O maior sucesso de bilheteria da Cinédia, na década de 1930, foi a primeira superprodução cinematográfica nacional. "Foi o filme que introduziu uma série de novos equipamentos e técnicas, como o uso da grua e de efeitos especiais. Pioneiro no efeito das cenas em que o carro, que está no estúdio, ganha a simulação de movimento em plena rua. Custou a fortuna de 350 contos de réis e teve sofisticados movimentos de câmera", conta o restaurador Hernani Heffner. Berlim na batucada (1944) De Luiz de Barros. "Trata-se de uma paródia da passagem do Orson Welles pelo Brasil, ocorrida dois anos antes da produção. O casting musical foi absolutamente extraordinário, com Francisco Alves e o Trio de Ouro, integrado por Herivelto Martins, Dalva de Oliveira e Nilo Chagas", comenta Hernani Heffner. Obrigado, doutor (1948) De Moacyr Fenelon. A adaptação de popular novela da Rádio Nacional, com o drama em relevo, teve valor de produção muito significativo, chegando a ser construÃdo um vagão de trem, especialmente para ser usado nas filmagens. Poeira de estrelas (1948) De Moacyr Fenelon. Classificado como uma comédia musical com traço muito inusitado. "De forma velada, é a história do relacionamento de duas moças. Ambas são separadas pelo destino e uma delas faz um longo flashback da relação aparentemente de trabalho das duas. Na verdade, porém, o roteiro revela o sentimento mais profundo que uma nutria pela outra", conta o restaurador. O dominó negro (1949) De Moacyr Fenelon. O primeiro filme policial assumido enquanto gênero feito na história brasileira traz mistério e assassinato, tudo em meio ao carnaval. "Além do artifÃcio do assassino estar fantasiado, a vÃtima da fita é um traficante de drogas. Nesse sentido, trouxe a primeira abordagem explÃcita do assunto, nas telas brasileiras", comenta Hernani Heffner. Estou aÃ? (1950) De Cajado Filho. Uma comédia musical carnavalesca que foi concebida para lançar Emilinha Borba como atriz, já no posto de protagonista. Há o registro, em três versões, do clássico Chiquita bacana. A inconveniência de ser esposa (1950) De Samuel Markezon. Foi uma adaptação de peça teatral do prestigiado dramaturgo Silveira Sampaio. %u201CFoi uma tentativa de efetivar o cine-teatro, com valores trazidos do palco relacionados, por exemplo, com a escalação do elenco. "Vale mais pela tentativa curiosa e por dos poucos tÃtulos, nessa linha, que sobreviveram ao tempo", analisa o restaurador da obra.