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Livro do tempo

Leitores explicam por que O apanhador no campo de centeio, de J.D. Salinger, atravessa décadas como um romance de geração

Nahima Maciel
postado em 05/02/2010 08:00

O escritor Bernardo Carvalho, 49 anos, leu a história de Holden Caulfield várias vezes. A estudante Mariana Capelo, 23, duas. O artista plástico Gê Orthof, 50, ;fugiu; para Nova York depois de visitar a narrativa de J.D. Salinger e o tradutor Jorio Dauster, 72, ficou viciado em tradução quando fez a primeira versão para o português de O apanhador no campo de centeio. A história do adolescente que foge de casa e da escola para viver uma crise virou um clássico da literatura de formação do século 20 e nunca saiu de moda.

Publicado nos Estados Unidos em 1951, só chegou ao Brasil uma década mais tarde. O diplomata aposentado Jorio Dauster estava em Washington quando leu a obra pela primeira vez, em 1957. Conversando com o amigo Álvaro Alencar, anos mais tarde, brincou que apenas um livro o levaria a um trabalho de tradução. Coincidentemente, era o preferido do amigo. A dupla começou então a traduzir O apanhador no campo de centeio sem saber se um dia seria publicado. Mais tarde descobriu que outro diplomata, Antônio Rocha, também se ocupava de transpor a narrativa. Os três se juntaram para reunir tudo numa única tradução. Foi a Editora do Autor, fundada por Rubem Braga e Walter Acosta, quem se interessou pelo material e publicou a primeira edição brasileira, de capa simples, cinza e sem imagens, como exigia Salinger.

;A única explicação possível para um sucesso de 60 anos é que a substância do livro é uma crise de adolescência e quem não passou por uma crise de adolescência, achando que o mundo adulto era hipócrita e que você estava sendo violentado na sua pureza para fazer o que o mundo espera de você?;, diz Dauster, hoje tradutor de Nabokov, Philip Roth e Ian McEwan. ;É um tema presente em todos os lugares e gerações, mas a novidade do livro é que é em primeira pessoa, altamente coloquial. Com isso, ele evitou filosofar, usar aquelas coisas psicanalíticas. Quando o autor se coloca na condição de adulto fazendo comentários, ele quer trazer sua bagagem intelectual. E isso não acontece com Salinger. Como é um depoimento personalíssimo também não cai em melodramas.;

Hoje na 17; edição, o livro continua a conquistar leitores de todas as idades. Estudante de publicidade, Mariana Capelo foi apresentada a Holden pelo pai. Tinha 14 anos, sentiu-se um pouco distante do contexto e achou o personagem ;muito louco;. Passada a adolescência, leu novamente.Lourenço Dutra só leu O apanhador aos 27 anos: obra para qualquer idade

E dessa vez, ficou fascinada. ;Fui entendendo um pouco mais o que ele (Salinger) queria, essa história de posicionar a adolescência na vida, as crises. Na primeira, não tinha entendido muito bem por que ainda não estava passando por aquilo, entendia como uma revolta do personagem, mas, na segunda vez, ficou tudo mais claro, me identifiquei mais.; Durante a segunda leitura, Mariana não só treinou o inglês ao ler o original como sentiu profunda admiração pelo personagem e fez de O apanhador livro de referência e consulta. ;Quem fica com raiva dele é porque não entendeu;, sentencia. ;Eu queria ter a coragem de fazer as coisas que ele fez, de chutar o balde.;

Depois de reprovar em cinco matérias e ser expulso de pelo menos três colégios, o apanhador decide antecipar férias de Natal e zarpar para Nova York. Vive a zanzar pela cidade, contar dinheiro e refletir sobre como o mundo parece perfeito para alguns, embora para ele pareça um cenário deslocado e triste, no qual não quer e não pode se encaixar. O artista plástico Gê Orthof leu a história de Holden aos 16 anos. Não lembra dos detalhes, mas ficou bastante sensibilizado. ;Me deu muita vontade de fugir para Nova York, coisa que fiz logo em seguida. Fui com o pretexto de estudar, mas foi uma fuga. Queria fugir da ditadura, da minha casa, do Brasil, e consegui. Lembro bem desse espírito de aventura indo pra Nova York.; O que Salinger semeou na adolescência, o artista colheu mais tarde.

Já o escritor brasiliense Lourenço Dutra, autor de O olhar dos outros e O destino de um certo Frank Zappa e outros contos, demorou para passar dos beatniks a Salinger. Foi aos 27 anos, depois de ler Jack Kerouac e John Fante que ele descobriu O apanhador. ;Ao mesmo tempo que é um livro meio melancólico, meio triste, é bem plausível e serve para todas as fases de passagem da vida adolescente para adulta. É atemporal e serve para qualquer idade, todo mundo se identifica, todo mundo já passou por aquelas coisas, já teve sentimento de rejeição, de não se colocar no mundo;, garante.Mariana Capelo foi apresentada ao livro quando tinha 14 anos: força na segunda leitura

Professor de história para ensino médio e fundamental, Dutra ficou intrigado com o contexto no qual o livro foi escrito. Publicado no pós-guerra, quando os Estados Unidos viviam a perseguição imposta pelo macartismo, O apanhador no campo de centeio parecia deslocado. No retrato de um jovem revoltado e marginal às regras da moral e bons costumes, Salinger fazia um depoimento contra o ideal do sonho americano cultuado pela política do senador Joseph McCarthy. Dutra acredita que Feliz ano velho, de Marcelo Rubens Paiva, e Morangos mofados, de Caio Fernando de Abreu, são correspondências justas na literatura brasileira para o fenômeno de O apanhador. Seriam, como o livro de Salinger, narrativas de formação lidas por várias gerações. Assim como a história de Holden Caulfield nos Estados Unidos, Feliz ano velho integra os programas de leitura do ensino médio no Brasil.

Trecho de O apanhador no campo de centeio

"Tem coisas difíceis da gente lembrar. Por exemplo, a volta do Stradlater do encontro com Jane. Quer dizer, não consigo lembrar direito o que é que eu estava fazendo quando ouvi a droga dos passos dele no corredor. Talvez ainda estivesse olhando pela janela, mas juro que não me lembro. Estava preocupado demais, é por isso. Não brinco em serviço quando me reocupo com alguma coisa. Fico até precisando ir ao banheiro. Só que não vou, porque minha preocupação é tão grande que não quero interrompê-la só para ir lá. Qualquer um que conhecesse o Stradlater também ficaria preocupado. Já tínhamos saído juntos com garotas algumas vezes, e sei o que estou dizendo. Ele não tinha escrúpulos. Nem um pouco." (página 44)

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