Nahima Maciel
postado em 07/02/2010 16:28
Quando Alice despencou pela primeira vez naquele buraco sem fundo do belo jardim vitoriano, durante um simples passeio de barco pelo Rio Tâmisa, provavelmente no verão de 1862, uma roleta incrível começou a girar alucinadamente. Desde então, um número gigante de possibilidades se apresentou a qualquer criatura disposta a entrar no mundo maluco de Lewis Carroll. A atmosfera nonsense de Alice no país das maravilhas se espalhou pelos quatro cantos do mundo, foi traduzida em mais de 50 idiomas e respingou em boa parte de tudo que se chamou moderno ou vanguarda no século 20. E por todo o século 20. Para se ter uma ideia, o livro de Carroll foi publicado em 1865 com ilustrações de John Tenniel que, de tão populares, passaram a ilustrar de lata de biscoitos a outros produtos de consumo.Hoje, Alice virou Barbie, mas não é nessa apropriação que estão os aproveitamentos mais criativos e contemporâneos da menina cuja cabeça, felizmente, não foi cortada durante o julgamento organizado pela Rainha de Copas. A Alice contemporânea pode ter a cara do mundo do cineasta Tim Burton ou das colagens do artista plástico Luiz Zerbini. Alice no país das maravilhas, o filme, tem a australiana Mia Wasikowska no papel da menina e Johnny Depp como Chapeleiro Maluco, mas só estreia em 23 de abril. Para quem quer novidade, resta a delicada (e ousada) edição do livro publicada pela CosacNaify, com tradução de Nicolau Sevcenko e ilustrações de Luiz Zerbini. E a certeza de que, por onde passa, Alice agrega cabeças e paixões.
O escritor Ruy Castro lembra bem como aconteceu. Ganhou o livro no aniversário de 5 anos e nunca mais o deixou de lado. ;Foi o primeiro livro que li na vida;, conta. Em 1992, propôs [SAIBAMAIS]traduzi-lo para a Companhia das Letrinhas e adaptou a história para o universo infantil. ;Não aceito encomendas, raramente traduzo e, quando faço isso, é sempre com algum livro que me diga muito respeito;, avisa o escritor. ;Não me propus a fazer uma simples tradução, mas sim uma condensação, visando atingir a garotada por volta de 10 anos. Nesse sentido, a dificuldade foi a de resumir a história usando o máximo possível de palavras do original.;
A versão de Castro se juntou às mais de 40 adaptações e edições do texto original de Carroll em português. ;Alice é riquíssimo, pode-se passar uma vida inteira estudando e não se roçar mais que a superfície do livro. É fascinante do ponto de vista da narrativa, da lógica, da simbologia, de tudo. É uma obra-prima, um patrimônio da humanidade;, acredita Castro, que, para não quebrar o encanto, nunca viu sequer um filme com adaptação da história e quer passar bem longe dos cinemas com cartazes do longa de Tim Burton. ;Para que ver o filme se tenho o livro? Alice é tão rico, fala de tal modo à nossa imaginação, que dispensa ir ao cinema e ver aquelas imagens numa tela. Na nossa cabeça, é muito melhor.;
No espelho
Pode até ser melhor, mas para um alicemaníaco qualquer materialização da personagem no mundo real ou na tela do cinema é alvo de curiosidade. A designer Adriana Peliano, 35 anos, foi fisgada na infância ao assistir a um desenho de Alice na televisão. E fez o que faz toda criança: assistiu centenas de vezes, ininterruptamente. Começou a colecionar objetos relacionados o universo de Carroll. O primeiro foi um gato de pelúcia. Na estante de casa, tem mais de 200 edições do livro e, há 15 anos, decidiu ilustrar o livro por conta própria. ;Na época, estava muito angustiada porque achava que as ilustrações que existiam eram muito restritas ao universo que o texto sugeria. Hoje existe um repertório vasto;, diz.
Os desenhos de Adriana nunca foram publicados, mas já foram expostos em Oxford, onde Carroll morava, e estão disponíveis no blog www.alicenations.blogspot.com. A designer é tão envolvida com o tema que se tornou membro da Lewis Carroll Society de Oxford e criou a versão brasileira da sociedade. ;No ano passado, com a proximidade do filme, tive a ideia de fundar a Sociedade Lewis Carroll do Brasil porque queria que deixasse de ser uma coisa pessoal e queria ter um recurso de oferecer às pessoas informação e estimular a produção de trabalhos na área.;
A artista plástica Sônia Paiva também é dessas que trouxe Alice para o dia a dia. A Gordinha, personagem de boa parte da obra de Sônia, nada mais é que uma mistura de Alice com a própria artista. O fascínio vai além da personagem e se estende também ao autor. ;Era um cara totalmente à frente do tempo dele, era multimídia, fotógrafo, matemático, um cara muito doido. O que ele faz é transformar a linguagem. Alice, para mim, sou eu ou qualquer pessoa no processo de autoconhecimento. Quando ela cai no buraco, cai também dentro dos problemas dela e esses problemas são os problemas da sociedade;, analisa a artista, que coleciona edições do livro.
O ilustrador Jô Oliveira também coleciona edições antigas. ;É um marco na história do livro infantil, que até então era ligado aos contos de fadas e às histórias com intenção de educar. Aí vem esse sujeito, que era semirreligioso, e escreve uma história que não tem moral nenhuma, é um pesadelo o que se passa com essa menina. Na realidade, é um rito de passagem da infância para adolescência, eu acho;, completa Oliveira, que ilustrou uma versão de Alice para a Ática e outra sobre a história do livro escrita por Lucília Garcez. Na versão do artista Luiz Zerbini, Alice no país das maravilhas é um imenso jogo de baralho. ;A ideia partiu do capítulo da Rainha de Copas, no qual os personagens são cartas. Achei que era graficamente rico. Recortei as cartas, fui montando os personagens e criando uma maquete como se fosse o país das maravilhas.;
PARA SABER MAIS
Carroll é o pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898), professor de matemática no Christ College de Oxford que também gostava de marionete e ilusionismo. Matemático brilhante, Dodgson se tornou amigo de Alice, a menina de 10 anos para a qual escreveu o livro, que na verdade era bizarro para a época. Na Inglaterra vitoriana, a disciplina comia o espaço das brincadeiras e os pequenos entravam na rotina dos adultos. Carroll subverteu essa organização ao escrever a história da menina que cai num mundo onde bichos falam, cartas mandam e a lógica do mundo real não existe. Na época, Alice contou com ilustrações de John Tenniel, que não gostou do resultado e mandou Carroll tirar de circulação os 2 mil exemplares da primeira edição. O próprio Carroll chegou a fazer alguns esboços, mas Arthur Rackham e Peter Newell são considerados tão importantes quanto Tenniel. Os surrealistas Salvador Dalí e Marx Ernst ilustraram edições limitadas.
Você sabia?
; Nos anos 1960, John Lennon escreveu muitas músicas inspirado no universo lisérgico de Alice no país das maravilhas. Entre elas, I am the walrus e Lucy in the sky with diamonds.
; O filósofo Ludwig Wittgenstein chegou a analisar o livro e comparar momentos como aqueles em que Alice cresce e diminui com alguns desejos infantis.
; Os surrealistas foram muito influenciados pelo livro de Carroll. André Breton o chamava de ;meu professorzinho silvestre; e a ideia pregada por Tristan Tzara de recortar poemas e reconstituí-los aleatoriamente, símbolo do dadaísmo, é invenção do autor britânico.
; Para fazer o desenho lançado em 1951, a Disney contratou 13 roteiristas e os encarregou de criar uma história que fosse uma mistura de Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho.
; Mais duas versões de Alice no país das maravilhas estarão disponíveis a partir de março. A Salamandra e a Moderna lançam caixas que incluem Alice através do espelho.
ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS
De Lewis Carroll. Tradução: Nicolau Sevcenko. Ilustrações: Luiz Zerbini. CosacNaify, 166 páginas. R$ 45.