Diversão e Arte

O jornalista Clemente Luz registrou, com lirismo, histórias dos primeiros tempos da cidade

postado em 22/02/2010 09:53
Nos primórdios da capital federal, lá pelos idos de 1958, a hora do almoço era sagrada pra muita gente. Diariamente, por volta das 11h30 da manhã, os candangos sintonizavam seus radinhos de pilha na Rádio Nacional para ouvir aquele que muitos consideravam "a voz ou o texto de Brasília". Seu nome, Clemente Luz. Jornalista, escritor, poeta e tido como o primeiro cronista da cidade. Nascido no interior de Minas, de família bem humilde, Clemente se viu "obrigado" a enveredar para o mundo das letras, ainda menino, como ele mesmo relata em um dos seus livros, Minivida: "Em consequência de um acidente, que me levou três dedos na mão esquerda ainda em criança, quando fazia "artes" com a cana de açúcar, não fui encaminhado a uma oficina ou à lavoura. As condições de vida de meus pais me levariam fatalmente a isso. Mas a perda dos dedos criou o drama de "educar o menino, pra não ter que pegar no cabo da enxada" ou no trabalho pesado%u2026. Resultado: enveredei bem cedo para a literatura e para o estudo que eram o meio mais fácil de fugir a tarefas pesadas%u2026" Clemente Luz: afável, generoso, boêmio, alegre e extremamente agradávelO gosto pelas palavras foi se desenvolvendo e ele acabou fazendo carreira como jornalista nos principais veículos de comunicação de Minas e de Brasília, inclusive no Correio Braziliense. Isso sem falar nos livros que escreveu. Um dos mais marcantes é Invenção da cidade, de 1967, que traz justamente uma coletânea das principais crônicas lidas diariamente na Rádio Nacional. "Eram crônicas belíssimas, que ilustravam bem aquele áureo período. Retratavam aquela geração de homens rudes, de operários, de gente que veio tentar a vida. Ele tinha essa afinidade com o povo e conseguia transmitir aqueles pensamentos, aquela aura dos nossos primeiros habitantes de uma maneira suave, clara e lírica", revela o jornalista, historiador e escritor Adirson Vasconcelos, que foi amigo de Clemente Luz. Realmente, como constata Adirson, não há nenhum arquivo em áudio das crônicas de Clemente Luz nem com a família e nem no acervo da própria Rádio Nacional de Brasília. Um dos filhos do cronista, o também jornalista Marco Aurélio Luz, 57 anos, quer aproveitar as comemorações do cinquentenário de Brasília e relançar uma edição comemorativa de Invenção da cidade. No novo projeto, Marco Aurélio pretende reunir depoimentos de alguns pioneiros de Brasília que conviveram com Clemente. Entretanto, ainda depende de patrocínio para a iniciativa. "Seria uma oportunidade para quem não conhece o trabalho do meu pai e uma maneira de prestar mais uma homenagem à cidade que ele tanto amou. Mas está um pouco complicado. Tenho que correr atrás de patrocínio, editora, então estou em busca de apoio", revela. Curiosidades As lembranças dos amigos e de quem conviveu com Clemente Luz são as melhores possíveis e alguns descrevem fatos bem interessantes sobre ele. Um sujeito afável, generoso, boêmio, alegre e extremamente agradável. Para o jornalista Guido Heleno, que foi vizinho de Clemente bem no começo de Brasília, o cronista foi muito mais do que um simples amigo. Foi determinante para a escolha de sua profissão. Morador da antiga Quadra 31 (hoje 711 Sul), o então adolescente começou a ter contato com a imprensa de uma maneira curiosa. O vizinho da frente Clemente Luz distribuía o Jornal do Brasil, mas como era época de muita chuva, boa parte do jornal encalhava. E o que sobrava, Guido devorava com os olhos. "É uma imagem marcante que tenho dele com aquele monte de jornal amontoado no alpendre de sua casa. Foi assim que comecei a ler diariamente o Jornal do Brasil, especialmente um suplemento que contava com grandes nomes do jornalismo e da literatura", lembra Guido. O mais interessante é que, sem saber, Guido Heleno já conhecia os textos de Clemente Luz. Assíduo leitor de uma revistinha infantil publicada pelo Senai quando criança, Guido só foi descobrir muitos anos depois que o autor das historinhas era justamente o cronista mineiro. "Foi uma grata surpresa saber disso. Sempre tive o Clemente como parâmetro. Admirava seu jeito de escrever e, infelizmente, perdi o contato com ele no fim de sua vida. Gostaria de ter convivido mais, de relembrar aqueles bons tempos", expressa. Uma outra história peculiar da vida do primeiro cronista de Brasília é lembrada pelo amigo e colega Adirson Vasconcelos. Como sempre teve um bom relacionamento com os operários que aqui vieram para trabalhar na construção da capital, e os compreendia como ninguém, em muitas ocasiões, era Clemente Luz quem lia e até escrevia as cartas dos candangos, já que boa parte deles era analfabeta. Em textos primorosos, Clemente conseguia reproduzir em palavras os sentimentos daquela gente simples e humilde. "Me lembro bem dele sentado na sua mesinha lá na Cidade Livre (hoje Núcleo Bandeirante) atendendo os candangos que confiavam tanto nele. Acredito que muitos até conseguiram namorada, ou até mesmo casamento por causa do Clemente", recorda Adirson. Trecho da crônica Alvorada de espelhos "O imenso louva-a-deus traçado no papel, antes promessa da presença da cidade, já tem forma e base sólida no chão do planalto. No local mesmo onde a visão do profeta viu que se formava um lago, a cidade foi inventada, porque não havia tempo para ser elaborada e edificada.Do alto, em avião que sobrevoa, ou quando a gente caminha por certas áreas desabitadas e longínquas, a cidade se entrega à visão, na sua plenitude urbanística e arquitetônica. E a visão é magnífica, é grandiosa e toca o coração dos que estão chegando. Provoca lágrimas nos que aqui chegaram nos primeiros tempos e assistiram à invenção da cidade, no milagre da criação das formas de cimento e aço."

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação