Nahima Maciel
postado em 27/02/2010 07:00
Mal começa, a entrevista envereda para território tenso. Nas oito linhas destinadas à pergunta, uma sucessão de afirmações especula sobre as dificuldades e choques nas relações humanas e a repercussão nas artes visuais. O artista plástico Tunga não vacila e responde: ;Não vejo enunciado na sua pergunta. (;) A sua pergunta já se responde.; O entrevistador não se intimida e desenvolve o raciocínio na pergunta seguinte. O artista prossegue: ;Você está me dizendo isso (;);. Mais adiante, afirma: ;Você parte de pressupostos com os quais não necessariamente concordo.; É um dos momentos mais saborosos e, sem dúvida, aquele que mais justifica a escolha do pesquisador Felipe Scovino para o formato do livro Arquivo contemporâneo.Realizado em 2008, com a Bolsa de Estímulo à Produção Crítica da Funarte, e recém-publicado pela editora 7Letras, o livro compila 13 entrevistas em forma de pergunta e resposta com artistas brasileiros contemporâneos nas quais Scovino se propôs a investigar que ideias e conceitos norteiam a produção brasileira atual.
Professor do departamento de artes visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o autor queria entender que caminhos tomou a arte brasileira após a dissolução do neoconcretismo (1). ;Eu julgava que havia poucos estudos. Essa profusão de ideias da arte brasileira está muito baseada numa visão estrangeira sobre nossa produção. Estabeleci duas vertentes: uma de artistas brasileiros que começaram a produzir entre anos 1960 e 1970 e uma segunda leva, que seriam os artistas que tiveram um amadurecimento entre anos 1990 e 2000;, conta.
Para a primeira parte, Scovino entrevistou Antonio Dias, Tunga, Waltercio Caldas, Carlos Vergara, Artur Barrio, Anna Bella Geiger e Cildo Meireles como representantes de uma geração imediatamente posterior ao neoconcretismo. ;É uma geração que, claro, tem laços com os neoconcretos, mas tende a criar um campo experimental e autônomo frente às experimentações que Hélio (Oiticica) e Lygia (Clark) fizeram no neoconcretismo.;
Da geração seguinte o autor entrevistou Ernesto Neto, Adriana Varejão, Cao Guimarães, os integrantes do coletivo Chelpa Ferro, Ricardo Basbaum e Raul Mourão. ;Quando chegamos aos anos 1990 e 2000 é engraçado porque a lembrança deles do neoconcretismo é muito vaga. O Neto talvez seja o artista que se difere, mas para a Adriana isso (o neoconcretismo) não vai estar presente no trabalho;, constata Scovino, que montou a lista de entrevistados baseado na proximidade geográfica ; todos são artistas residentes no Rio de Janeiro ; e no conhecimento das obras. ;Escolhi por ter uma proximidade intelectual por conta de meus trabalho no terreno acadêmico e pelo fato de ter assistido ao vivo as obras desses artistas.;
O formato de entrevista com pergunta e resposta, em vez de perfis críticos teve a intenção de privilegiar a fala dos artistas. Scovino acha pobre a quantidade de publicações que privilegiam a voz do artista no mercado editorial. O formato pergunta-resposta permite uma complementação da obra, mas nunca uma explicação. O autor repudia a ideia de buscar na fala do artista os atalhos para a compreensão dos trabalhos. ;O importante é atentar para como essa escrita cria uma conversa com o trabalho plástico do artista;, avisa.
O trunfo de Arquivo contemporâneo está exatamente em ler o que os artistas mais significativos da cena contemporânea brasileira ; ainda que faltem expoentes de outras regiões do país ; pensam sobre os mais variados temas que não os conceitos referentes a suas obras. Assim, é revelador ler Ernesto Neto a especular sobre a utopia da felicadade na sociedade brasileira ou Cildo Meireles lamentando as últimas gestões conturbadas da Bienal de São Paulo e Adriana Varejão comemorando a colonização portuguesa no Brasil.
No sentido inverso, o autor também se beneficiou das entrevistas para pensar sobre sua própria pesquisa. ;No caso do Tunga foi uma entrevista tensa, mas foi a primeira vez que me questionei sobre as perguntas que fazia, ele me fez pensar na posição de entrevistador, que, às vezes, é muito cômoda. Foi interessante, ele me colocou à deriva e me tirou da posição segura de entrevistador.;
1 - Mais emoção
O neoconcretismo foi um movimento comandado por artistas cariocas nas décadas de 1950 e 1960 em oposição ao concretismo, que reunia principalmente artistas de São Paulo. Os cariocas pregavam a presença de mais emoção e expressão na arte abstrata geométrica que dominava o ateliê dos artistas na época. Ao contrário dos cariocas, adoradores da forma em detrimento da emoção, os neoconcretos defendiam a subjetividade e a interação com o público. Os maiores nomes do neoconcretismo foram Lygia Clark e Helio Oiticica.
; O que eles dizem
Tunga
;O que você está chamando de arte contemporânea é um fenômeno que acontece dentro da sociedade ocidental, num circuito determinado de cultura, que envolve museus, colecionadores, críticos, imprensa, etc. Isso é, a rigor, um grão perto daquilo que é o exercício da subjetividade da sociedade ocidental contemporânea. Falar do homem e da existência a partir desse pequeno grão me parece restrito;;
Ernesto Neto
;A essência do valor da existência humana, do que é a vida, de como construímos uma sociedade, continua sendo a mesma: extremamente egoísta e baseada no lucro. A questão é mudar o paradigma. As escolas de samba são um bom exemplo dessa possibilidade. As pessoas trabalham o ano inteiro para em um dia acontecer a concretização. Tem um dado de fantasia, de querer um sonho. É outra utopia, que não é a social, de querer uma sociedade mais justa. É uma utopia de felicidade. À sociedade está faltando sonhar.;
Adriana Varejão
O mercado internacional estava funcionando de uma maneira tão absurda que existia fundo de investimento em arte. Nesse sentido, artistas com uma carreira mais extensa estavam com suas obras cotadas em valores baixos, comparando com os artistas novos. Não havia lógica. Por isso, acho que a crise econômica pela qual estamos passando normalizará esses valores e o mercado parará com a histeria, e as pessoas passarão a adquirir arte pelas razões certas.;
; Trecho do livro
Felipe Scovino ; A vida é uma contingência e uma sucessão de absurdos e perversidades (entendendo esta categoria como desvio de uma expectativa). Temos que lidar com as nossas diferenças e nos relacionar com as práticas culturais e sociais do outro. Nessa interface de estranhamentos, o choque e a violência tornam-se práticas cotidianas. Obviamente, não penso que essa lógica deva ser glorificada. Portanto, um dos olhares possíveis sobre a sua obra é a forma como se organizam essas práticas mundanas. Desta forma, por que Laminas almas, por exemplo, sofreu uma ojeriza?
Tunga ; Não vejo pergunta no seu enunciado, mas uma sucessão de acepções e apreciações que você faz tanto à vida quando ao mundo cultual e uma observação sobre minha obra. Não saberia o que responder. A sua pergunta já se responde. Você está fazendo uma questão a partir de um pressuposto de uma visão do mundo que é sua. Não necessariamente é a minha, ou do índio da Amazônia, ou ainda de um Maori. Então, nessa sua ideia do mundo, não me cabe nenhuma resposta. Acho que o trabalho daria essa resposta porque ele é a oficina onde os significados entram e saem com outra face. Mas não o meu discurso, porque não necessariamente inúmeras possibilidades da pertinência da prática artística, você coloca dentro de uma perspectiva cultural explícita a produção que dali brota, eximindo a possibilidade dessa produção nascer de outra concepção cultural. Quer dizer, por exemplo, se eu for católico apostólico romano não vou responder nem vou ter acesso ao sentido da obra, segundo essa pergunta, porque a minha obra estaria lidando com princípios que não são condizentes com essa fé, onde o mundo não é um caos. O que você chama de absurdo, outros podem chamar de fatalidade ou de destino ou ainda afirmarem que isso já estava escrito. O que acha disso?