Diversão e Arte

Os gêmeos Gustavo e Otávio Pandolfo inauguram, hoje, no CCBB, a exposição Vertigem

Mostra é premiada como a melhor de 2009 pela Associação de Críticos de Arte de São Paulo

Nahima Maciel
postado em 02/03/2010 00:53

Gustavo e Otávio Pandolfo tinham 10 anos quando pisaram em Brasília pela primeira vez. Juntos, ganharam um concurso de desenho na escola. Cada um desenhou em uma folha e em casa separadas, mas o resultado foi exatamente o mesmo e o jurado se sentiu obrigado a duplicar o prêmio, uma viagem para Brasília. Os meninos vieram com a avó. Há 20 dias, desembarcaram novamente na capital. Dessa vez, com 35 anos e como profissionais e autores das obras da exposição Vertigem, em cartaz a partir de hoje no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). E não mais como os caçulas dos Pandolfo, mas como Os Gêmeos, a dupla de artistas cuja trajetória passa pelo grafite antes de se instalar nas galerias de arte e museus de todo o mundo.

Os bonequinhos amarelos começaram a aparecer nos muros de São Paulo nos anos 1990. Nascidos no bairro Cambuci, Otávio e Gustavo conheceram a cultura hip-hop na adolescência. Começaram a grafitar com a turma do break e, pela primeira vez, preocuparam os pais. As fogueiras debaixo da mesa da sala, os vulcões de arroz com lava de gema de ovo escorrendo sobre os carrinhos de feijão ; visão criativa do prato do almoço ; e os desmanches de brinquedos não chocavam a mãe. Mas o grafite assustou. Acontece que assim tomou forma o estilo dos meninos, um estilo que transformaria o espaço urbano de São Paulo numa gigantesca experiência de tipos e narrativas. Ora divertidas, ora críticas, as composições chamaram atenção. Tudo que os meninos queriam era um estilo.

O traço fino, a obsessão pelos detalhes e a carinha redonda e, às vezes, meio quadrada dos personagens passaram a ser inconfundíveis e migraram para as galerias quando curadores de arte perceberam o alcance e o valor dos trabalhos. A dupla é hoje representada por duas galerias. Em São Paulo, estão na Fortes Vilaça. Em Nova York, na Deitch Projects. É difícil (e caro) comprar uma pintura dos Gêmeos. Pouca coisa para nas galerias. Quem não conseguir avistar os grafites nas ruas pode tentar um museu. Há trabalhos da dupla nos acervos da Tate Modern, em Londres, do Het Domein, na Holanda, do Museu Nacional de Tóquio e do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP). No ano passado, o primeiro mural realizado em Nova York, berço do grafite mundial, chamou atenção da crítica Roberta Smith, do New York Times. A crítica resultante agradou à dupla, que confessa não gostar muito de falar sobre o trabalho.

Como Os Gêmeos começaram com street art e migraram para a galeria, foram também bombardeados por perguntas sobre as peculiariedades, semelhanças e diferenças entre pintar na rua e no espaço formal. Hoje, se confessam um pouco cansados dessa discussão. ;É um triste ver que as pessoas mastigam sempre a mesma coisa e não enxergam o que faz diferença, é uma coisa que cansa. Claro que são coisas diferentes, mas é que elas misturam. São duas coisas diferentes, uma complementa a outra. Isso na galeria não tem nada a ver com grafite. As pessoas falam que o grafite veio para a galeria e para o museu, não tem nada a ver. Isso é ridículo. Isso é uma exposição de arte. Grafite tá na rua. É pegar o spray e pintar a parede do túnel;, diz Gustavo.

Assista a vídeo de entrevista com Os Gêmeos

Mais interessante que toda essa discussão, a dupla acredita, é a maneira como trabalha e o apelo dos desenhos. Gustavo e Otávio formam quase um. Só não ocupam o mesmo lugar no espaço. Quando se trata de pensamento, um emenda no outro. ;Se já falou com ele, já falou comigo;, solta Otávio. Até o caderninho de desenhos ; um para mulheres riscadas em poses pornográficas, nova investida dos irmãos, e outro para tipos masculinos ; é o mesmo para os dois. Se não fossem gêmeos, Gustavo tem certeza, não haveria painéis como os que criaram para o CCBB. ;Eu complemento o trabalho do meu irmão e ele me complementa, e de mãos dadas vamos juntos. A gente trabalha junto, a quatro mãos fazendo a mesma coisa, pensando a mesma coisa, em sincronia. Um mundo, uma só voz;, diz Gustavo.

Do lado de fora, rostos redondos amarelos observam a cidade sob fundo vermelho. No interior, sobre um fundo cinético, os personagens se espalham em gestos e situações ora irônicas, ora lúdicas. É preciso chegar perto de cada um e observá-los. Há tantos detalhes que é impossível não levar sustinhos de surpresa. Você viu o seio na mão do moço de verde, mas pode não ter visto as pequeninas vaginas estampadas em seu paletó de lantejoula. Melhor olhar de novo. E um mocinho toca um violino feito de crânios, mas só depois de olhar bastante para os pênis do boné e das vestimentas é que se pode notar. Um outro tenta penetrar no fundo que parece girar. O público só vê o traseiro do sujeito. Mão e pé aparecem mais distantes. E há também uma medusa divertida, com muitas cabeças na cabeça. Uma infinidade de detalhes que se repetem nas esculturas. Uma delas veio do museu holandês, outra de Nova York. As casinhas e os cubos são as criações mais recentes.


VERTIGEM
Exposição dos Gêmeos. Visitação até 16 de maio, de terça a domingo, das 9h às 21h, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB).



Vasto universo

Tritrez
; É um lugar imaginário no qual Os Gêmeos vão buscar seus personagens. ;A gente não gosta de falar muito sobre isso, é muito particular, mas é o que a gente acredita. É de onde vêm nossos desenhos, nossas ideias, um lugar em que a gente se sente bem, em harmonia, em paz;, explica Gustavo.

Roupas
; As roupas dos personagens carregam muitos significados e são espaços narrativos no qual a dupla solta a criatividade. ;Às vezes, a gente tá dizendo tanta coisa através da textura de uma simples roupa. Às vezes, não é nem o bonequinho ou a expressão do rosto do personagem, mas o contexto, o que tem em volta dele que liga uma coisa com a outra.;

Música e performance
; O trabalho dos Gêmeos não se resume a grafite e pinturas. Além das esculturas, eles fazem performances e já trabalharam em parceria com músicos como Siba e& A Floresta, Chico Science & Nação Zumbi e Damião Experiência. Afinal, um dos primeiros desenhos da dupla a serem publicados ilustrava o encarte do álbum de estreia de Thaíde e DJ Hum. Em uma galeria em Berlim, eles fizeram uma das primeiras performances: destruíram o próprio trabalho ; uma casa-instalação ; diante dos convidados atônicos.

Experiência familiar
; Arnaldo, o irmão mais velho, também é artista e ajuda os irmãos na concepção da mecânica das esculturas. Adriana, a do meio, administra os negócios. Os Pandolfo trabalham em família. ;O Arnaldo ensinou a gente pra caramba. Desde as coisas mais erradas às mais certas. É bom ter um irmão mais velho, ele ensinou tudo;, garante Gustavo.

Brasília
; Há um grafite dos Gêmeos em algum viaduto da cidade. Ou ;debaixo de uma ponte;, como eles dizem. Eles fizeram um dia desses, mas não lembram (ou não querem lembrar) qual a ;rua;. Pode ser no centro, já que Gustavo revela ter visto prédios altos ao redor. Mas pode também ter sido qualquer uma das tesourinhas das asas Sul ou Norte. Se o leitor encontrar, pode mandar mail para cultura.df@dabr.com.br

Vertigem
; A exposição estreou em outubro do ano passado na Faculdade Armando Álvares Penteado (Faap) e ganhou o prêmio de melhor exposição de 2009 da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

; Entrevista// Gustavo Pandolfo

Como é a ponte entre o que está planejado e o inusitado, entre o que acontece na rua e o que acontece na galeria?


Acho que a gente vive muito mais esse universo aqui do que aí for a, ás vezes aí for a é um pouco chato, aqui a gente se diverte mais. E a gente deixa aí, vai embora não tem limite. A gente divide muito claro o que é rua, galeria, performance. São todos elementos que a gente encontrou para se manifestar e se expressar através da arte.

Vocês têm pintado na rua?

A gente não tem pintado tanto na rua quanto antes, porque tem muito trabalho, muita viagem. Então não dá tempo. Mas quando a gente realmente sente vontade, vai e faz.

Todo mundo sabe que os bonecos amarelos são de vocês e vocês hoje são estrelas da arte contemporânea. Ainda é possível fazer grafite na rua anonimamente?

É até difícil pintar hoje em dia, não dá mais pra pintar não. A rua tem uma coisa muito legal, ela não tem dublê, ela é crua, verdadeira, não tem máscara, é de verdade. Não que aqui (na galeria) não seja, também é, mas na rua você está sujeito a qualquer coisa, está muito vulnerável a um cara gostar, não gostar, odiar. E tem que se preparar para a surpresa também. Mas é legal quando você sai para pintar e o cara tá lá, olha o que você fez e nem sabe quem você é. É legal, volta às origens. Mas é difícil hoje. As pessoas reconhecem, não tem jeito.

O quanto do grafite que vocês faziam no início está presente hoje no estilo de vocês?

Tem umas coisas que a gente fazia naquela época (anos 1980) e trouxe para a vida toda. Essa padronagem de roupa. Não era com stêncil, era na mão. Os detalhes, a necessidade de colocar bastante detalhe, o traço sempre um pouco mais fino. Agora virou super fino, mas na época já era assim, já tinha a necessidade de fazer coisas fininhas. E cor, sempre foi muito colorido. Mas essas coisa de ser mais lúdico foi o tempo. No início era grafite de estilo americano mesmo. Desenhava B-boy, os caras que dançavam break, coisas da cultura hip hop.

E vocês ficam angustiados de que isso fique cada vez mais raro diante do volume de trabalho dentro das galerias?

Não porque a gente acredita no que faz, isso tá dento da gente e a gente se dedica 100% quando tá fazendo. Acho que não. Sei lá, o mundo é muito grande. Por mais que você faça, cada vez parece que faz menos, as pessoas estão muito dispersas. Quem quer ver, vê. Quem não quer diz "ah, é bonitinho".

O painel pintado em Brasília é muito diferente dos outros lugares?

Os desenhos são todos inéditos. Tem muita coisa ligada a sonho, uma brincadeira com a realidade, temas do cotidiano misturado com temas desse universo paralelo que a gente criou, algumas coisas mais questionadoras, outras mais divertidas. E algumas lúdicas pra caramba, completamente místicas. E uns elementos mais eróticos. Tem um pouquinho de tudo, uma mistura que entra nesse processo da vertigem.

Anita Malfatti, que divide o CCBB com vocês, te diz alguma coisa?

Putz, fui ver lá outro dia. Gosto de arte do início do século. Tem alguns trabalhos dela que gostei, mas o que senti é que ela era experimental demais. Não seguia um estilo. Ela muda muito o estilo de um para outro, parece que ela estava sempre em busca de um estilo. Como experiência, para praticar e aprender, isso é bom. Mas gosto de gente que tem estilo, de olhar e falar "esse cara tem estilo". A gente leva muito a sério isso. (Gustav) Klimt, Van Gogh, Picasso, esses caras têm estilo. Gosto de gente que você olha e diz esse estilo é f;, inovador. Uma das nossas preocupações era ter um estilo nosso, uma autenticidade de olhar e dizer "é nosso". O grafite tem isso, faz parte do jogo ter estilo, ação, pintar pra caramba e ser reconhecido, levantar seu nome e defender.

O quanto São Paulo foi e ainda é importante para vocês?

Acho que pelo fato de ser uma cidade muito mutante, sempre em transformação, sempre acontecendo coisas, nunca é a mesma coisa, não tem uma regra, uma ordem, é uma cidade sempre desordenada. Com isso somos sempre forçados a inovar, criar, encontrar novos lugares e formas de pintar. Isso é que dá o tesão na coisa, que faz não perder a graça.

Tem espaço na cidade para esses personagens sempre?

Sempre tem, em qualquer cidade! Não só no Brasil. Qualquer lugar que a gente vai e acha que tem um ulgar legal pra fazer a gente faz.

O diálogo do trabalho com o lugar está na diferença entre os personagens?

Também, mas não é só isso, isso também ajuda. Acho que vai mais longe. É até difícil de explicar. Às vezes a gente coloca tanto significado em um gesto que a mão do boneco está fazendo que pra gente é mais significativo que um contexto geral.

Falar sobre o trabalho é maçante para vocês?

É, a gente não gosta de falar. Acho que a gente tá falando tanto aqui (no trabalho), tá tão aberto e explícito que é difícil de falar.

Vocês são tímidos?

Acho que a gente é um pouco sim. É difícil. O que é ser tímido? Às vezes sou tímido para uma coisa muito besta e pra outra não. Na rua não tem que ser tímido. Tem que chegar e se jogar mesmo. E a gente não tem medo de pintar e fazer o que a gente faz, então não tem muita timidez. Você faz e o importante é estar bem. Tá bem com o que a gente fez, tá perfeito pra mim e pro meu irmão? Ótimo, acabou. O que as outras pessoas vão dizer, pra gente, não importa. Ele é meu crítico e eu sou dele.

Vocês desenham juntos desde criança?

Desde pequenos. Desenhávamos na mesma folha. Tudo quanto era brinquedo que ganhava, a gente destruía. A gente achava que não era daquele jeito e se perguntava por que na fábrica fizeram a câmera daquele jeito, por que vou ter que ter um negócio que a fábrica fez pra mim desse jeito? Aí desmontava tudo, colocava o flash por baixo, a lente do lado e aí ficava legal. A gente fazia isso com comida. A gente causava. Fazia fogueira embaixo da mesa da sala de casa. Esperava ela sair e colocava fogo nas coisas embaixo da mesa. Era bom, isso desenvolve o processo criativo.

Quando o nome de vocês estourou e vocês foram para a galeria, isso em algum momento, incomodou?

Não incomodou porque a gente tinha feito umas experiências antes com galeria pequena e a gente viu que galeria é um lugar em que podíamos criar esse nosso universo mais tridimensional. E isso dá possibilidade de brincar com outras coisas, com música. Já tínhamos essa necessidade. Mas nosso trabalho é muito amplo, a gente já fez muitas coisas. Galeria é só uma. Fizemos um trabalho em parceria com o Siba e A floresta musical, até performance a gente já fez, duas vezes. Uma em São Paulo e outra em Berlim, em uma casinha dessas daí igualzinha (à da exposição do CCBB). Foi dentro de uma galeria grande, em uma exposição coletiva com mais de 40 artistas. A gente destruiu a casinha inteira durante a abertura, com pedaço de pau e máscara. Ninguém sabia quem a gente era. Os caras queriam bater na gente achando que não éramos os artistas. A gente só avisou um cara, nem o galerista a gente avisou. Destruímos tudo. É legal fazer isso. É nosso. Podemos criar e destruir. Foi meio pra questionar essa coisa do apego material que tem muito no universo da arte, essa coisa de "eu tenho e você não tem, eu consegui, comprei". Você chega, destrói tudo e fala "agora ninguém tem nada, virou lixo".

Na rua vocês precisam lidar com essa efemeridade o tempo todo, né?

É , pode ser apagado pela prefeitura, como fizeram com uma painel nosso. A gente teve uma reunião com o próprio (Gilberto) Kassab lá em São Paulo. Ele assumiu o erro e a gente refez. Paciência. É Brasil. Faz parte. Mas é bom porque eles estão entendendo que o grafite existe há muito mais tempo que a gestão deles. Eles têm que entender que isso faz parte da cidade, é cultura.

Vocês costumam ir a encontros de grafiteiros?

Costumamos. É legal, é uma troca. Sempre acontece. As pessoas sabem que a gente veio disso, é super legal trocar informação. Alguns têm (vontade de ir pra galeria) porque se espelham, mas outros seguem mesmo a raiz do grafite. Respeitam nossa conquista mas querem seguir o grafite de uma forma ilegal, na cidade. Acho legal porque é a essência da coisa, do grafite.

O que tem de diferente aqui no CCBB?

Primeiro por ser Brasília, um lugar em que estive com 10 anos. Foi um concurso de desenho que a gente ganhou, eu e meu irmão. Na escola. Meu irmão fez o mesmo desenho, estávamos em casas separadas. Aí os caras deram (o prêmio) para os dois, não teve jeito. Aí a gente trouxe minha avó.

Dá vontade de sair pintando em todo esse concreto?

Dá! Por mim a cidade seria inteirinha pintada, tudo. Imagina a cidade inteirinha assim (como o painel do CCBB).

A crítica, o engajamento ou o comentário social são coisas que, às vezes, pautam vocês?

Não, mas acho que surge. Vai surgindo, mas a gente não se preocupa com isso não. E é legal porque a crítica tem sempre falado muito bem.

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