Ricardo Daehn
postado em 09/03/2010 12:31
Quando o olho do telespectador passeava pelas poltronas do Kodak Theatre, a estratégica posição da diretora californiana Kathryn Bigelow (de Guerra ao terror) se fazia notar: ela estava, literalmente, à frente do maior oponente da noite - o ex-marido James Cameron (de Avatar). "Lembrem-se de que o mundo em que vivemos é tão incrível quanto aquele criado por Avatar", chegou a pontuar um vencedor de efeitos especiais. O filme mais rentável de todos os tempos, com US$ 2,6 bilhões arrecadados, sucumbiu ao alcance de uma fita de proporções independentes. Agradecendo a Mark Boal (jornalista de campo da guerra no Iraque), "que arriscou a vida pelas palavras das páginas de um roteiro corajoso", Bigelow, 58 anos, cravou o mérito de ser a primeira diretora reconhecida pelo Oscar, já na 82ª edição. O concorrente ficou com três prêmios.
A trajetória surpreendente de Guerra ao terror confirma uma temporada luminosa em Hollywood para os pequenos estúdios. No prêmio máximo da indústria, a vitória de um longa de US$ 11 milhões pode parecer uma contradição. Mas, nos últimos cinco anos, a Academia privilegiou obras modestas (Quem quer ser um milionário?, em 2009, Crash - No limite, em 2006) e tramas que evitam o público juvenil (Os infiltrados, em 2007, Onde os fracos não têm vez, em 2008, e Menina de ouro, em 2005). A estratégia pode ser interpretada como uma tentativa de resgatar prestígio e credibilidade a uma premiação que, no início dos anos 2000, celebrou fitas de entretenimento como Gladiador (2001) e O senhor dos anéis - O retorno do rei (2004).
Um dos principais vencedores do Oscar 2010, por isso, não foi festejado explicitamente no palco do Kodak Theatre. As seis estatuetas de Guerra ao terror, que rendeu US$ 21 milhões no mundo todo, consolidam a Summit Entertainment, que despontou em 2008, com o adolescente Crepúsculo. Quando começou a circular em festivais, no fim de 2008, Guerra ao terror não provocou abalos. Entrou no Festival de Veneza, mas também passou despercebido. Após a estreia nos cinemas, e ótimas críticas, a sorte do longa começou a mudar. Em janeiro de 2010, apareceu entre os indicados ao Globo de Ouro. Foi derrotado por Avatar.
O entusiasmo financeiro do estúdio beneficiou Bigelow. No dia 21 de fevereiro, depois de ter vencido os prêmios dos sindicatos dos produtores e dos diretores, o drama bateu a superprodução de Cameron no Bafta, o Oscar britânico. Decolava aí uma campanha de divulgação que, abastecida por envio farto de DVDs aos integrantes da Academia, chegou a ser acusada pela imprensa de ser agressiva: um dos produtores, Nicolas Chartier, foi proibido de entrar na cerimônia do Oscar. Motivo: pediu votos para Guerra ao terror, por e-mail, em oposição ao "filme de US$ 500 milhões".
Mais independentes
[SAIBAMAIS]Uma das maiores zebras da noite, que seguiu uma linha muito convencional, foi a entrega do Oscar de roteiro adaptado, concedido ao também independente Preciosa. Premiado por O segredo de seus olhos (o segundo Oscar de melhor filme estrangeiro para a Argentina), Juan José Campanella desbancou o alemão A fita branca. Na festa, prevaleceu o tom emotivo, como quando o premiado Jeff Bridges disse se sentir "uma extensão do meu pai e da minha mãe (ambos artistas), que tanto amaram o show biz". Para além da graça de chamar Meryl Streep de "amante", Sandra Bullock agradeceu a formação (imposta pela mãe, Helga, uma cantora de ópera), mas sem esquecer "as mães que cuidam de crianças, não importa de onde venham%u201D."
Sem antecessores recentes, o protesto visual mais chamativo foi a abertura de uma faixa contra a matança de golfinhos na baía japonesa do Taiji, tema do melhor documentário The cove. Também com teor político, a melhor coadjuvante Mo'Nique (de Preciosa) agradeceu à Academia "antes de mais nada, por mostrar que se pode ganhar pela performance e não pela política". Mo'Nique também lembrou a colega negra Hattie McDaniel (de E o vento levou) "por sofrer, com paciência, de modo que eu não precisei".
O avesso da fantasia
"Este Oscar te vê", ressaltou para o diretor James Cameron um integrante da equipe de Avatar, ao empunhar o prêmio pela direção de arte da milionária produção. A atuação do diretor que, no passado, se autoproclamou "o rei do mundo", permaneceu, porém, invisível à maioria dos quase seis mil votantes da Academia, na cerimônia que evidenciou a indisposição do prêmio em relação à ficção científica, um gênero com ares de eterno penetra no tapete vermelho. "A linha de frente de uma guerra impopular", como sintetizou o roteirista Mark Boal, do multipremiado Guerra ao terror, saiu da trincheira e valorizou, de modo simbólico, o contingente de 270 mil combatentes (homenageado no discurso de Boal).
Mesmo com a retomada da expressão "e o vencedor é" (no lugar do politicamente correto "e o Oscar vai para"), poucos momentos injetaram ânimo na festa. "Eu mereci isso de verdade ou simplesmente venci vocês pela persistência?", foi o ponto de partida da premiada atriz Sandra Bullock, que se mostrou tão irrepreensível quanto a benfeitora personagem de Um sonho possível.
Antes de ser derrotada pela 12ª vez (desde 1982), Meryl Streep comentou a oportunidade de ver os colegas "limpos e arrumados". Foi o caso da maioria, mas outros deixaram marcas de exotismo, mesmo em noite de gala. Contrastando com a elegância da atriz Vera Farmiga (de Amor sem escalas), Morgan Freeman deu entrevista mascando um chamativo chiclete. Foi engraçado ver Sarah Jessica Parker, um cultuado molde de sofisticação, de Chanel, mas dona de indomados fios de cabelo, na hora do palco. Numa performance robótica, a figurinista Sandy Powell, de look extravagante, dedicou o prêmio (por A jovem rainha Victoria) aos colegas que assinam, sem visibilidade, "filmes contemporâneos e de baixo orçamento".
Responsável por um dos melhores momentos, o comediante Ben Stiller apresentou o prêmio de melhor maquiagem, a caráter, como um representante na'vi (de Avatar). Com piadas maldosas relacionadas à caça de judeus (onipresentes no Kodak Theatre) e à estreita relação entre Matt Damon e Ben Affleck, os apresentadores Steve Martin e Alec Baldwin (unidos nas telas em Simplesmente complicado) roubaram muito da cena.