Em dado momento da narrativa do livro Meu tio, o protagonista Gérard, aos 8 anos, é desencorajado ao olhar alegre ;que faz mal ao seu pai;. Crescido ;num caixote sem graça e cinzento; (numa referência ao seio familiar), ele é quem domina, com um olhar incisivo, um texto publicado em 1958, tendo por base uma gênese pouco convencional: foi criado a partir do longa-metragem homônimo, assinado por Jacques Tati. Em ambas obras, o ataque aos efeitos da modernização no cotidiano é alvo das maiores críticas.
A redação, de fonte tão curiosa, nesse segundo romance da carreira do roteirista Jean-Claude Carri;re, reafirma o talento singular de alguém que, pela ;memória escrupulosa;, foi eleito, por exemplo, para assumir a ;autobiografia; Meu último suspiro, do colega espanhol Luis Buñuel (com quem colaborou em filmes como O discreto charme da burguesia). O leitor em potencial de Meu tio que visualize um tom sentimentaloide, repleto de sofrimento, dada a premissa, se engana: não é o corroteirista do pesado filme O tambor (1979), uma crítica em nada infantilizada de Volker Sch;ndorff, quem reverencia o cinema de Tati.
Desponta, na verdade, um autor afável, embebido pela vivência virginal de um narrador disposto a glorificar o tio Hulot e o inocente rastro deixado por ele. Ligado à existência desastrosa, o parente transita entre a zombaria e a indiferença dispensadas à sociedade em fase de autofagia. Avesso à invasão da modernidade, onipresente na trama, Gérard deixa claro o desprezo pelo ;acabamento da perfeição das superfícies lisas e do silêncio do progresso;. Irônico, o menino faz par, nessa qualidade, com a ;gentileza; dos funcionários do pai, diretor da fábrica Usina Plastac, cercado por rodas que escamoteiam o deboche em cima do empresário.
;Treinado para a ordem e a limpeza; o narrador compactua com o leitor os excessos do pretenso berço de ouro, como o fato de ter sido ;educado para respeitar até as flores artificiais;. Encabulado com os indícios de desenvolvimento (entre os quais o ;carro espalhafatoso;) dos pais um tanto distanciados, Gérard induz o leitor a ;apreciar; os pequenos defeitos do monossilábico tio ; ;a vergonha da família; ;, um morador de um bairro velho, irmanado de ;fatalidade que o mergulhava em todo o tipo de problema;.
Diante do apelo visual inerente às tramoias de Hulot, Jean-Claude Carri;re (antecedendo a colaboração estendida ao cinema) se rendeu à dobradinha com o ilustrador Pierre Étaix. Num casamento perfeito, Étaix ; saído do set de Meu tio, tendo contribuído em cenários e gags da fita ; domina traços modestos e precisos, adequados à síntese de descrições, como a que descreve o pai de Gérard, cuja ;vida não ia além de algumas linhas retas;.
Chuva
Numa das melhores sequências (sim, o livro tem pegada de filme), Carri;re observa as evoluções cênicas das personagens que participam de um garden-party. Num estalar de dedos, a atmosfera clássica da confraternização deságua num clima chuvoso, no qual se instaura um piquenique que prontamente descamba para uma vivência em improvisado canteiro de obras. Nessa linha lúdica, que já rendeu outro livro: Na garupa do meu tio (baseado nas obras de Tati e assinado pelo ilustrador David Merveille), Meu tio traz passagens deliciosas, como a destreza do menino Gérard em apontar características da vizinha analisada ;como a gente examina um móvel barroco;.
O leve saudosismo narrado ganha mais dramaticidade quando se constata a trajetória, de fundamento simples, em que o ilustrador Pierre Étaix (diretor de filmes como Yoyo, de 1965) calcou a carreira: do popular posto do palhaço Nino ao título de fundador da Escola Nacional de Circo. Roteirista de figurões como Andrzej Wajda e Louis Malle, Jean-Claude Carri;re simplifica o texto à altura de um menino rico e enfezado por causa dos ;brinquedos que se divertiam sozinhos;. Feliz mesmo, na conivência com Gérard, fica o leitor, que é brindado com as desventuras do garoto que, à saída da escola, confessa: ;; dava a mão (para o tio) e me deixava levar;.
Na telona
Principais filmes em que Jean-Claude Carri;re participou como roteirista
A bela da tarde (1967)
O discreto charme da burguesia (1972)
Esse obscuro objeto do desejo (1977)
Danton, o processo de uma revolução (1982)
A insustentável leveza do ser (1988)
O Mahabharata (1989)
Cyrano de Bérgerac (1990)
Brincando nos campos do Senhor (1991)
Sombras de Goya (2006)
Meu tio, Jean-Claude Carri;re
Ilustrações: Pierre Étaix
Tradução: Paulo Werneck
Cosac Naify
Capítulo 1 (trecho)
Alguns dos meus amigos passaram a infância em apartamentinhos minúsculos, atravancados que nem matas fechadas. Mergulharam na sombra e no silêncio de prédios altos, repletos de segredos. Correram em parques imensos, onde as árvores ganhavam mil formas diferentes.
Eu não conheci nada disso. Tive o azar de ser uma criança moderna, de estar à frente do meu tempo. Cresci num caixote sem graça e cinzento, parecido com as casas de hoje em dia. Passeei devagar, com prudência, pelas trilhas de um jardim fechado. Esse jardim ; que eu conheço de cor, reencontro a cada passo ; não tinha sequer uma rachadura, uma mancha. No gramado, pedras dispostas a intervalos rigorosamente regulares vigiavam meus passos. Algumas cercas-vivas baixinhas não separavam nem escondiam nada. Plantas brotavam com dificuldade nos caminhos de cascalho cor-de-rosa ou azul. Bem no centro, a bocona aberta, como se quisesse recolher uma chuva há tempos desejada, um peixe de aço se retorcia num tanque de pedra.
Desconfio que hoje em dia esse cenário da minha infância talvez pareça normal ou até fora de moda. Mas acho que naquela época a gente estava à frente do nosso tempo. Meus pais viam uma certa glória nisso.
Ainda consigo ver o meu pai admirando aquele jardim, de manhã, antes de sair para a fábrica. Ele ficava parado na escadinha, a barriga a brilhar com a corrente de um relógio e quatro canetas, o olhar de tartaruga sob os óculos. Meu pai, grande, satisfeito... Ele admirava aquele jardim porque foi ele mesmo quem o concebeu.
Não quero falar mal dos meus pais. Mas, já que estou falando deles, sinto que não posso me impedir de sorrir, nem de dar risada... Quem sabe? O jeito deles se tornou tão comum hoje em dia que me pergunto se alguém é capaz de apreciar os pequenos defeitos deles como eu.
À sua maneira, eles achavam que estavam me fazendo feliz. Eu tinha todas as facilidades desejáveis: uma escrivaninha envernizada, um porta-canetas de primeira, brinquedos automáticos que não precisavam de mim para funcionar. Era só colocá-los para funcionar e eles desfilavam na minha frente. Eu não tinha função nenhuma. Meus brinquedos se divertiam sozinhos.
Além disso, eu tinha roupas limpas, sapatos resistentes, uma alimentação balanceada. Vitaminas e calorias eram administradas sem economia. O que me faltava? Será que eu mesmo, tristonho naquele conforto todo, sabia exatamente o que queria?
Toda manhã, meu pai me deixava na escola. Enquanto eu fechava a minha pasta, meu pai, na escadinha, acendia o primeiro cigarro ; eram contados: doze por dia ;, e minha mãe, na sua minifaxina matinal, espanava freneticamente tudo o que estivesse ao seu alcance. Desse modo, ela perseguia, todo dia, a poeira, a cruel poeira que tinha se depositado ali durante a noite.
Poeira teimosa, inimiga da minha mãe, naquela época... De onde mais ela podia brotar? Que deus malfeitor a espalhava, durante o sono dos homens, por uma casa totalmente moderna? Poeira teimosa, arisca ; minúsculos grãozinhos amarelos que flutuavam através do sol... Minha mãe não tinha dó daquele ouro dançarino.
E a gente ia embora, na mesma hora, todos os dias. Eu sentado ao lado do meu pai, e o nosso cachorro atrás. O nome dele era Daki. Cachorro esperto, de raça, bassezinho de patas curtas, como eu te invejava de vez em quando... Durante a noite você escapava, eu sabia: ia encontrar três ou quatro vagabundos, bichos sem coleira nem nobreza, moleques do dia que vai nascer, e você saía correndo junto com eles.