Diversão e Arte

Racismo e a opressão são encenados durante a Sexta-feira da Paixão

postado em 28/03/2010 12:16

O dia em que o jovem ator Santa Rosa virou Jesus Cristo nunca mais vai sair de suas lembranças. Ele entrou no galpão cheio de gente. Foi jogado num círculo, encurralado. Todos o olhavam com desdém e estranheza. Viu de repente que uma mulher, a diretora Verônica Moreno, cochichava segredos ao pé de ouvido daquele povo. E eles gritavam.

; Assassino; Assassino; Você será crucificado;
No turbilhão de tantas vozes, a mente rodopiou em pensamentos. Vieram reminiscências de uma infância de fome e restrições. Episódios que pareciam adormecidos levantaram-se com a força dos demônios. Ele aguentou até a exaustão. Caiu prostrado ao rés do chão. Chorava de dor na alma. A mulher até então nefasta assume o tom doce e anuncia.

Santa Rosa encarna o Cristo Negro: personagem de vida; Parabéns, o papel de Cristo é seu, lembra, emocionada, Verônica Moreno.
Santa Rosa, 25 anos, arte-educador e estudante de teatro da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, agora já entende o estado de ser Jesus Cristo. Algumas horas de ensaios nas costas foram suficientes até para redimensionar a sua religiosidade. Sente-se menos perdido. Uma sensação que ainda está bem distante do momento em que ficar diante de 20 mil pessoas na Paixão do Cristo Negro, que acontecerá na próxima sexta-feira, às 19h, na região central de Samambaia (Quadra 302), mais uma cidade do DF órfã de teatro e de qualquer equipamento cultural.

; É uma responsabilidade porque o espetáculo toca em fé, preconceito, excluídos. É, sem dúvida, o meu grande personagem, avalia Santa Rosa, morador de Candangolândia.

A Paixão do Cristo Negro existe há 14 anos em Samambaia. Nasceu com viés politizado, dialogando com a Teologia da Libertação, de Leonardo Boff, os postulados do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, e a Antropologia Teatral, de Eugenio Barba. Na base está uma mocidade vinda das Pastorais da Juventude, forte braço social e político da Igreja Católica. Gilberto Alves, que viveu Cristo por alguns anos, traz no discurso a convicção de que a Paixão é ponte de reflexão com a comunidade esquecida pelos poderes públicos.

; É importante sempre dialogar com os dias atuais. O Sermão da Montanha que utilizamos é do Leonardo Boff. Vamos dialogar, neste ano, com o tema da Campanha da Fraternidade: ;Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro; (Mateus 6, 24c), destaca Gilberto.

; O racismo, o preconceito, todos os tipos de violência, opressão e miséria estão ligados naturalmente à Paixão. Queremos que a comunidade se identifique com o sofrimento deste Cristo, hoje crucificado pela fome, pelo preconceito, completa Verônica.

Ética crucificada

É evidente que o potente conteúdo da Paixão do Cristo Negro vai fazer o espectador pensar, por exemplo, na ;Oração da propina;, constrangedor episódio envolvendo deputados distritais, que se diziam cristãos e embolsavam escuso dinheiro. Mas não haverá nomeações diretas.

; A Paixão do Cristo Negro fala de ética e a ideia é conscientizar por meio do teatro essa crise de valores da sociedade. Questionar esse conceito do ;rouba mas faz;, que está internalizado em populações menos esclarecidas, pontua Gilberto.

Encenada em cidade cenográfica, a via-sacra de Samambaia tem raízes multiculturais, étnicas e pontuada pela diversidade. Apesar do evidente apoio da Igreja Católica, os atores tem crenças diversas. Verônica conta que uns são evangélicos, outros espíritas e alguns praticantes das religiões afrobrasileiras. Nas cenas de dança, há sons da periferia e da cultura popular como rap do hip-hop, o berimbau da capoeira. São mais de 300 atores e não atores. Alguns descobriram, na Paixão, os caminhos do teatro. O que faz Verônica Moreno, diretora, atriz e arte-educadora, inflar de orgulho.

; Tássia Aguiar e Josuel Júnior, que são meus assistentes de direção, começaram na via-crucis. Hoje, os dois fazem teatro profissional, comemora Verônica Moreno, cuja filha Jéssica cresceu vendo o burburinho em torno do Cristo Negro.

; Ficava ali no meio do povo e lembro das pessoas fazendo uma círculo com as mãos para proteger os atores durante a encenação, conta a garota, que agora dança sob a coreografia de outro filho da diretora, Paulo Russo.

Verônica Moreno sentiu que a ideia do Cristo Negro vingou quando uma senhora, diante da encenação, chegou próximo a diretora e sussurrou emocionada:

; Eu posso tocar em Cristo?

Verônica sorriu e balançou a cabeça positivamente. O toque é mesmo o fim das barreiras entre os indivíduos.

Origem popular
Quando a Paixão do Cristo começou em Samambaia, tudo era improvisado: figurinos, cenário e adereços. Não havia também a ideia do Cristo Negro assim tão esboçada. A preocupação era mesmo fazer algo que dialogasse com aquela comunidade, que estava ali esquecida pelo poder central do Plano Piloto. As pessoas perceberam que os atores tinham a cara do povo. Daí, foi a origem do Cristo Negro. No início, lá em 1997, o espetáculo era itinerante e o povo passeava diante de ;várias misérias; para que a conscientização ficasse bem evidente. Com o tempo, veio o espaço limitado para a construção da cidade cenográfica, numa festa que hoje dura três dias.

Personagem da notícia

Verônica Moreno (foto) é uma cearense que um dia pensou em ganhar dinheiro fazendo humor nas barracas de Fortaleza. Atriz e arte-educadora formada pela Faculdade de Artes Dulcina de Moraes (FADM), terminou o casamento por conta do teatro. O ex-marido pediu para ela se decidir entre a vida familiar e o palco. Ela gargalha quando lembra desse impasse. Hoje, além de comandar com disciplina e fé as centenas de atores e técnicos da Paixão do Cristo Negro, Verônica encara a personagem nordestina de Ilhar, em cartaz até hoje no Teatro Caleidoscópio. Na peça, ela vive uma senhora consumida pela solidão e as dores do sertão. O texto e a direção são do filho Paulo Russo. Tem ainda cenografia dos irmãos Adriano e Fernando Guimarães e a participação de Wanderson Barros (garoto que se revelou em Paixão do Cristo Negro). Um esquete da montagem venceu o I Festival de Cenas Curtas da Faculdade Dulcina de Moraes.

ILHAR
Teatro Caleidoscópio (CSLW 102 Bloco C, Galeria Sudoeste; 3344-0444). Hoje, às 20h. Direção e dramaturgia: Paulo Russo. Ingressos: R$ 10 (meia). Não recomendado para menores de 10 anos.

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Assista à entrevista com Verônica Moreno e Santa Rosa e leia trecho da dramaturgia

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