postado em 02/04/2010 09:29
Montreal - Quando as luzes do palco se acendem e o artista adentra o tablado pela primeira vez, não é apenas o começo da magia para quem assiste, mas o fim de mais um ciclo para quem escolheu fazer do Cirque du Soleil sua vida. Por trás das cortinas, estão não apenas técnicos e treinadores, mas um batalhão de 5 mil apaixonados pelo circo, que cuidam desde a concepção do espetáculo e a escolha dos artistas até a confecção de figurinos e cenários. Desses, 2 mil passam o ano todo na sede da companhia, em Montreal, no Canadá, um ambiente todo moldado para que nenhum deles se esqueça do principal propósito de seu trabalho: levar o encanto do circo a um mundo que já quase se esqueceu dele.
Das mesas de quem desempenha o trabalho mais burocrático é possível acompanhar o artista que treina à exaustão um único número, durante todo o dia. Estúdios e escritórios estão lado a lado, separados apenas por enormes janelas, e a integração entre quem, em breve, estará nos palcos e os que nunca passarão perto deles é estimulada em diversos espaços de convivência espalhados pelos três prédios do complexo. Se, mesmo assim, alguém ainda se esquecer, por um momento, que trabalha para um circo, um pipoqueiro que percorre os corredores da sede periodicamente faz com que ele se lembre de que, nesse lugar, também é preciso se divertir.
Com os artistas, não é diferente. A imensa sala em que ensaiam os voos e as acrobacias com que encantarão multidões poderia passar por um ginásio qualquer, não fossem os elementos dos shows, como lustres e adornos, que servem para lembrar os artistas da finalidade do seu esforço. Nesse espaço, todos passam por um treinamento inicial de quatro meses, no qual aprendem a mesclar ginástica e dança, acrobacia e arte. "Uma grande parte das pessoas que chega aqui vem dos esportes, mas temos também artistas, cantores e pessoas que já trabalham em circos tradicionais. A variedade de aptidões é muito alta, o que torna o treino extremamente interessante e ainda mais desafiador", observa o diretor de treinamento acrobático, André Vallerand.
No caso dos ginastas, o principal obstáculo é vencer a barreira das regras impostas pelo esporte. "Aqui eles podem fazer os mesmos exercícios ao qual estão acostumados, mas com liberdade para explorar diferentes maneiras de realizar o exercício. É a liberdade artística, à qual eles não estão acostumados", explica Vallerand. Nos quatro meses em que ficam em Montreal, os novatos também passam por uma "imersão artística", com aulas de expressão corporal, ritmo, coordenação e canto. "O mais difícil é despertar no atleta um desejo para que ele se torne um artista. E, uma vez que ele descobre a sua criatividade, tem todo o potencial em mãos para desenvolver um personagem", afirma a diretora de treinamento artístico, Caitlan Maggs. Os treinos específicos para cada espetáculo podem durar até oito meses, principalmente se os shows estiverem ainda em processo de criação.
Nasce um show
Na outra ponta do desenvolvimento de um espetáculo está o fundador do Cirque, o também artista canadense Guy Laliberté, que mantém a "fábrica de espetáculos" sempre ativa. É de uma ideia de Guy que nasce um novo show. E, após a escolha de detalhes fundamentais, como a natureza do espetáculo - fixo ou itinerante, montado em um teatro ou uma tenda de circo - a magia começa a sair do papel. O passo seguinte é fazer o convite a um dos milhares de diretores já catalogados por olheiros da companhia em todo o mundo.
"A escolha é feita com base no tipo de show que o Cirque quer fazer, porque temos espetáculos com conteúdo mais adulto, mais família, mais multimídia", explica Carmen Ruest, diretora de criação do grupo. A decisão depende, também, dos elementos que vão sobressair no novo show: dança, teatro, acrobacias. Com o novo diretor, surgem o enredo, os personagens, a música, os quadros. Dele vem a demanda pelos artistas, pelos cenários, pelas fantasias. São necessários pelo menos dois anos para que o espetáculo amadureça e caia na estrada. Atualmente, 20 shows estão sendo apresentados em todo o mundo, sendo sete deles fixos em cidades como Orlando, Las Vegas e Tóquio. No Brasil, o Quidam, que já passou por seis cidades, entre elas Brasília, fica até 16 de maio, com apresentações em São Paulo e em Porto Alegre.
Fábrica de fantasias
Enquanto os artistas fazem seu trabalho, cerca de 400 funcionários produzem tudo o que será usado no picadeiro: de roupas e sapatos, a perucas e adereços de cabeça. O controle de qualidade é feito em todo o processo, desde a cor dos tecidos usados - cerca de 80% deles são tingidos pela própria companhia, para que nunca falte matéria-prima para as fantasias - aos ajustes finais no corpo de cada artista. E é apenas em cena que todo o trabalho de meses é colocado à prova. Às vezes, o tecido não se ajusta ao movimento, e a fantasia volta às pressas para Montreal. Cada artista possui, pelo menos, duas roupas para cada show. Se acontecer algum dano a uma delas, o reparo ou mesmo a confecção de outra fantasia tem que ser feito na sede, o que pode durar até um mês.