Diversão e Arte

Ismael Caneppele mostra como os jovens esquecidos no interior do país reinventam a vida na internet

Livro de escritor e artista multimídia, com inspiração autobiográfica, vira filme premiado no exterior

postado em 06/04/2010 07:00
Ismael Caneppele em cena de Os famosos e os duendes da morte: o escritor escreveu o roteiro

O escritor gaúcho Ismael Canep-pele gosta de viajar para cidades cortadas por linhas de trem. ;É muito misterioso esse universo. Eles estão sempre indo para um destino exterior que você não sabe qual é. Sempre que escuto o apito, sinto uma angústia de partir. Mas os trens hoje são só de carga, não transportam passageiros;, discorre ele, sobre o veículo de transporte obsoleto no Brasil.

A metáfora da partida e do não pertencimento é usada em abundância na literatura do autor de Os famosos e os duendes da morte, livro que virou filme dirigido por Esmir Filho, sem previsão de estreia no circuito comercial de Brasília. Caneppele tinha apenas 17 anos quando saiu de casa na região de Lageado e partiu para São Paulo. Na metrópole afastada da cultura do interior do Rio Grande do Sul, ele se fez ;o ator mais jovem; da companhia do diretor de teatro Gerald Thomaz. ;O problema da cultura alemã no Sul do país é o conservadorismo dessas pessoas. Elas são muito atadas a tradições arcaicas, equivocadas. Muito ligadas à aparência, do que os outros vão falar. O que é muito interessante porque tem essa imagem de muita segurança, fraternidade e amor entre os vizinhos, mas no fundo é um grande policiamento. Só pude falar sobre isso depois que passei uns 10 anos fora e de longe consegui ver o que tinha de bom;, relembra o autor

Sete anos depois de uma carreira bem-sucedida no teatro, bateu a vontade de também se dedicar às letras. Em 2007, lançou Música para quando as luzes se apagam (Editora Jaboticaba). Na obra, um adolescente morador de uma cidadezinha no Sul do país narra descobertas sexuais em seu diário. ;Me baseei na história de uma prima cuja mãe descobriu e queimou um diário. Pedi para que ela me mostrasse a parte salva e decidi ir mais fundo e transformar o protagonista em um menino gay, que não tem pudor nenhum de falar sobre a sexualidade para ele mesmo. Os adolescentes surtam com o livro, recebo muitas cartas deles;, afirma o escritor.

Tédio gaúcho


Já em Os famosos e os duendes da morte, segundo livro da carreira do autor de 30 anos, em tom confessional, outro adolescente entediado com o marasmo de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul encontra refúgio no acesso à internet banda larga. A perspectiva de uma viagem, para assistir à performance ao vivo do cantor e compositor norte-americano Bob Dylan, serve como subterfúgio para um passeio sem volta para longe da vila de colonos de origem alemã. ;A parte autobiográfica é a angústia que eu senti quando tinha 14 ou 15 anos. A vontade que eu tinha de ir embora, de partir e de me afastar dessas pessoas porque é uma comunidade com a qual eu nunca me identifiquei. Quando você cresce num lugar pequeno e só tem referências de uma cidade pequena, essa partida é muito pior. Se desligar das raízes, da estrutura que você conhece, é muito mais forte. Os famosos e os duendes da morte é uma grande carta de despedida para minha mãe, feito para mostrar todo o amor que sentia por ela;, confessa Caneppele.

Nas telas do cinema , universos paralelos são intercambiados e ligados por linguagem poética, cenários lúdicos e trilha sonora folk. O vazio existencial do protagonista tem espaço tanto na realidade quanto na fantasia. Sendo a última potencializada pela aparição de um ;Bob Dylan; (assim mesmo entre aspas), interpretado pelo próprio Ismael. ;Eu tive de passar quase dois anos morando em Lageado para trabalhar no roteiro junto com o Esmir. Todo o ódio que eu sentia voltou de uma vez. Fazia parte também da minha preparação como ator. Eu não tinha mais nenhum sotaque, era um completo paulistano. Tive de perder 25kg para o papel do Bob. Foi um mergulho muito profundo;, admite o ator e roteirista. Além de Bob, Caneppele protagoniza, ao lado da artista plástica local Tuane Eggers, série de inquietantes vídeos caseiros com os títulos Agonia e butterflies. O escritor, ator e roteirista não adianta os próximos trabalhos. Mas vai continuar atuando como artista multimídia? ;Acho que o futuro é esse, né? Renascentista;, brincou Caneppele.

; TRECHOS
Os famosos e os duendes da morte


; ;Naquela noite tinha quase luz. A lua estava cheia. Naquela noite a noite não parecia noite. No início daquela noite, eu estava no sofá da casa que um dia foi nossa, assistindo à televisão e comendo o sanduíche enquanto bebia o copo de leite carregado com muito mais chocolate do que as pessoas precisam para se satisfazer. Comer e ver televisão ainda implica escolher entre o gosto e a comida. O início daquela noite era igual ao início de todas as noites. A cidade se recolhendo no inverno. Eu não lembro o que era, provavelmente um daqueles seriados de fim de tarde que todo mundo assistia, mas ninguém confessava. Aqueles seriados adolescentes onde todas as atrizes adolescentes têm mais de 20 anos.;

; ;Vivíamos naquele lugar onde todos dormiam a mesma hora para acordar no mesmo dia. Lá, se lá ainda existisse, seria assim. É. As estações, por mais definidas, pouco influenciavam na intensidade real dos acontecimentos e nada contribuíam para que alguma mudança real operasse sobre as pessoas e seus destinos. As vidas precisando se parecer para nenhuma chamar a atenção. Alguns partiam e, quando voltavam, se surpreendiam com a incapacidade de mudança que a cidade conservava. Prédios antigos davam lugar a construções utilitárias, árvores eram arrancadas para não sujar os carros e as gramas que cresciam entre os paralelepípedos sufocavam sob grossas camadas de asfalto, mas, por dentro, todos continuavam exatamente iguais. As mães perdendo os filhos. As meninas engravidando. Os idosos apodrecendo. Tudo tão depressa. Não é preciso ser velho para sentir o tempo.;

; ;Os do longe são os que sabem quem eu sou. Um dia eles também tiveram medo do que hoje me assusta. Se existe vida depois da queda, eles são a certeza. Passam comigo a noite para eu não me sentir sozinho nas manhãs, quando a cidade fica ainda mais gelada, pequena e tão longe do mundo real que eu chego a me perguntar se ela existe de verdade. Eles ficam e eu os entretenho, do meu jeito. De noite, eles fazem eu acreditar que a manhã nunca vai acontecer. Que não haverá escola. Nem cidade. Nem família. Tudo é muito mais simples do que eu. Partir, eles dizem, é apenas uma questão de.;

Filme sobre partidas

Primeiro longa de Esmir Filho, Os famosos e os duendes da morte capta o sentimentos de isolamento e as imagens poéticas do livro de Caneppele

Felipe Seffrin

São Paulo ; O nome Os famosos e os duendes da morte pode assustar, mas o longa de estreia do diretor Esmir Filho está longe de ser um filme de terror. É antes de mais nada uma singela história de amor e de descobertas: nos confins do Rio Grande do Sul, onde a internet é o único meio de os jovens escaparem da realidade fria e entediante, um jovem fã de ;Bob Dylan;, apaixonado por uma garota que nunca terá, decide deixar tudo para trás e ir em busca de uma vida que faça mais sentido. Primeiro, ele terá que lidar com o encontro de um homem misterioso e tomar coragem para dizer adeus. ;O livro é poético, subjetivo. Foi incrível adaptá-lo, porque eu me emocionava lendo o livro e queria passar para o espectador a mesma emoção que eu senti ao ler o texto. Por isso, a gente tentou transpor para a tela imagens que representassem um sentimento semelhante, sem ter um narrador explicando tudo ou o menino dizendo seus pensamentos em voz alta;, conta Esmir.

Ismael Caneppele vestido de Bob Dylan: o livro é um testamento de adeus ao interior do Rio Grande do SulO ator Henrique Larré interpreta o protagonista sem nome, que se identifica como Mr. Tambourine Man (clássica canção de Bob Dylan) em seu blog, no qual escreve sobre seus sentimentos e, sobretudo, decepções. Órfão de pai, ele tem uma relação complicada com a mãe. Apesar de morarem juntos, ambos estão sempre distantes. Na minúscula cidadezinha colonizada por alemães onde vive, chamada de ;c... do mundo; a toda hora pelo personagem, também nada lhe interessa. O que ele realmente gosta é de ver as fotos e vídeos da jovem Jingle Jangle, personagem da estreante Tuane Eggers, e de Julian, papel de Ismael Caneppele.

Fixado na ideia de que ;longe é o lugar onde se pode viver de verdade; e ;cansado de não fazer nada;, o protagonista decide deixar tudo e ir sozinho a um show do ;Bob Dylan;. Antes, é atraído pela aparição de Julian, que mesmo incompreendido e malvisto retorna à cidade. Jingle Jangle, a garota com quem o jovem sonha dias e noites, por um motivo que vai sendo explicado aos poucos, não está mais no vilarejo. E estar próximo do sinistro Julian é estar perto da doce menina da internet. Recheado de cenas em paisagens bucólicas, que para o protagonista já não tem nenhuma beleza, e poéticas passagens, onde o adolescente confunde o mundo real com suas fantasias, Os Famosos provoca no espectador dezenas de questionamentos sobre a vida. De fato, é esta a intenção do diretor.

Embalado pelo folk rock melódico do gaúcho Nelo Johann e, claro, por Mr. Tambourine Man na versão original, e com uma fotografia marcante, o filme que estreou primeiro em Porto Alegre, São Paulo e Rio é longa introspectivo e delicado. Quem já se sentiu pequeno em uma cidade minúscula e mesmo quem sempre morou na cidade grande se identificará com as angústias do personagem principal. No fim das contas, tudo mundo nasce, cresce, ama e diz adeus.

Três perguntas - Esmir FIlho


Esmir Filho é conhecido pelo curta Tapa na pantera, visualizado mais de 10 milhões de vezes na internet. Antes de Os famosos e os duendes da morte, dirigiu curtas premiados como Alguma coisa assim, Ímpar par e Saliva.

Assim que leu o livro você pensou em adaptá-lo?
Eu estava com outro projeto para fazer, sobre velhinhos. Só que quando eu vi essa história, percebi que tinha tudo a ver com o que eu faço em curtas-metragens, que é falar da adolescência, da melancolia, do inconsciente adolescente. O livro dele nem estava terminado, era só um esboço, mas ele topou e virou meu roteirista. Então eu fui para o Sul, vivi nos lugares onde o Ismael viveu e onde a história se passa, para poder entender tudo melhor.

O que você quer dizer com o filme?
Ao conhecer essas cidadezinhas, percebi que tinha uma grande parcela de jovens feliz onde está, e outra dizendo que aquele não era o seu mundo, com vontade de ir para cidades maiores, viver outras experiências. Esse é um filme sobre partidas. No fundo, é sobre partir da adolescência e encarar a idade adulta.

O nome do filme é o mesmo do livro. Por que você manteve o título?
Todo mundo me pergunta por que Os famosos e os duendes da morte. Se eu for sentar com você e procurar um nome, vamos discutir por horas. O que é ser famoso? O que são duendes da morte? O que são os fantasmas que nos rodam? Eu gosto de nomes lúdicos, que instigam, sombrios, que falam um pouco da adolescência de hoje, dessa coisa de internet.


Trajetória internacional

Os Famosos e os duendes da morte (Brasil/França, 2009, 95min) já recebeu os prêmios:

; Melhor longa-metragem de ficção e Prêmio da Crítica Internacional ; Festival do Rio 2009
; Melhor filme ; 13; Festival Internacional de Cinema de Punta del Este
; Melhor Diretor Internacional ; 16; Festival Internacional de Cinema de Valdívia, no Chile
; Melhor Longa Iberoamericano de Ficção e Melhor Fotografia na categoria Ficção (para Mauro Pinheiro Jr.) ; Festival Internacional de Cinema de Guadalajara, México.

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