postado em 17/04/2010 07:45
Viver em Brasília é fazer parte de uma aventura gastronômica diferente, que carrega os sabores de vários lugares do Brasil e do mundo. Com 50 anos de história, as receitas na capital federal não poderiam deixar de ser democráticas. Nesse meio século de vida, os pratos que podem ser chamados de tradicionais na cidade são variados: a pizza cheia de molho de tomate da Dom Bosco, o quibe com a cerveja gelada do Beirute, o pastel quentinho da Viçosa, a massa do Roma, o bacalhau e a picanha do Dom Francisco, a feijoada do Carpe Diem e os pratos cheios de requinte do Piantella. Quem ainda não provou sequer uma dessas delícias não sabe o que é ser brasiliense.Quando os três irmãos de Araxá (MG) desembarcaram em Brasília, nos anos 1960, ficaram deslumbrados. ;As notícias que chegavam por lá eram que aqui era o Eldorado, o melhor lugar do Brasil. Anos depois, eu acredito que ainda é;, conta Hely Veríssimo, 62 anos. Junto com os irmãos Enildo, 64, e Elsy, 60, ele comprou, em 1968, a Pizzaria Dom Bosco, oito anos depois de ter sido aberta na 107/108 Sul, a primeira rua comercial a surgir na capital idealizada por Juscelino Kubitschek. A pizza de massa grossa, com bastante molho de tomate e queijo fez sucesso.
Como não existia molho pronto na época, eles copiaram a receita de um tio que já tinha uma pizzaria em Minas. ;Aqui, era ponto de encontro. Como havia poucas casas e pouca gente, todo mundo se reunia na hora do lanche;, lembra Hely. O tempo passou e a fórmula continuou a mesma. Para o empresário, o segredo do sucesso foi apostar em um só sabor. ;A pizza de muçarela não enjoa, dá para comer todos os dias, é igual a pão com manteiga. Eu como três pedaços todos dias com mate sem açúcar e não engordo. Tenho fregueses que vêm todos os dias na hora do lanche da tarde e estão fininhos;, brinca Hely. Depois de 50 anos, o negócio continua familiar, e as casas do Sudoeste e da Asa Norte são comandadas pelos filhos dos três irmãos.
Recheio farto
Outro mineiro que gravou seu nome na gastronomia local é Sebastião Gomes da Silva, que chegou a Brasília em 1958. E isso só aconteceu porque Sebastião e a mulher, Ivanildes, perderam o ônibus que os levaria para Belo Horizonte, em viagem de lua de mel. Com o tempo extra de espera, o casal provou os pastéis vendidos pelo ambulante Eugênio Apolônio. Sebastião adorou o produto e propôs sociedade na hora. Nascia ali a Pastelaria Viçosa. A massa artesanal e o recheio farto encantaram os brasilienses. Hoje, o negócio é comandado pela filha do casal, Patrícia Rosa. ;Começamos com uma portinha e hoje somos quase uma indústria de pastéis. É preciso ter muita fé e perseverança, e estamos sempre atualizando a Viçosa, sem perder a ideia de trabalhar com um produto popular;, explica a empresária.
Voltando ao mundo das massas, está na W3 Sul o restaurante italiano mais tradicional de Brasília, o Roma, comandado há 46 anos por Simon Pitel, 73 anos. O empresário saiu da Bélgica em fevereiro de 1958, pronto para seguir novos caminhos. Desembarcou no Rio de Janeiro e, um mês depois, já estava em Brasília, na chamada terra prometida. ;Tudo o que eu queria na vida era me aventurar;, confessa Simon, com um português ainda cheio de sotaque. O Roma, na 511 Sul, já existia. Pertencia a um italiano chamado Luigi Brandi, que, segundo os registros de abertura, inaugurou a casa em 15 de abril de 1960. ;Quatro anos depois, ofereceram o comércio e eu me entusiasmei. Foi coisa de impulso, sem pensar. Eu só fui aprender a trabalhar com o tempo;, admite Simon.
Nos anos 1970, a casa reinava no cenário gastronômico. ;Eu era majestade. Não há quem não tenha vivido no Plano Piloto nessa época que não tenha frequentado o restaurante. Todo mundo passou por aqui. Fernando Collor vinha quando tinha uns 20 anos, depois das noitadas. O Lula e o Fernando Henrique jantavam aqui antes de serem presidentes, e eu mandava muita comida para o Palácio do Planalto no tempo do Médici;, conta.
[SAIBAMAIS]A casa era conhecida pelas pizzas, a macarronada e a canja servida na madrugada. Sem falar no filé à parmegiana, que continua requisitadíssimo. Simon mantém há 30 anos grande parte da equipe, inclusive os cozinheiros. ;Para ter sucesso, é preciso ter um bom apoio e respeitar o freguês. O custo e o benefício devem ser iguais para as duas partes. Outra coisa: dono de restaurante vê, mas não enxerga. Tem muita coisa que aconteceu aqui que eu não posso contar;, provoca o empresário.
Aniversário
Ontem, o boteco mais conhecido de Brasília completou 44 anos de existência. O Beirute, fundado em 16 de abril de 1966, na 109 Sul, foi comandado por duas famílias até 1970, quando foi vendido para os irmãos cearenses Francisco e Bartolomeu Marinho, que eram garçons no local. ;Eles fizeram uma proposta e arrumaram um dívida considerável. A notícia correu na cidade e muitos jornalistas e intelectuais ficaram sensibilizados e resolveram ajudá-los;, conta Francisco Emílio, que hoje divide a administração do bar ; que ganhou filial na 107 Norte ; com o pai, Francisco, o tio e os primos.
O cardápio continuou árabe, mas ganhou um toque nordestino. O kibeirute, feito com queijo e servido com molho de maionese, e o kiberovo, servido com um ovo frito, fizeram sucesso. O filé à parmegiana é outro clássico. A última invenção da cozinha foi o escondidinho árabe, feito com queijo coalho e pimenta síria. ;Nesse aspecto somos como Brasília, uma mistura de tudo;, afirma o empresário. Como manter uma casa cheia depois de 40 anos? Francisco Emílio responde: ;Foi preciso um empenho gigante e dar muita atenção às mesas, à cozinha, ao atendimento no balcão para fazer o negócio dar certo;.
Outro local de muitos encontros e histórias está cravado há 35 anos no comecinho da Asa Sul, na comercial da 202. A apenas alguns minutos da Esplanada dos Ministérios, o restaurante Piantella virou reduto da liderança política nacional. ;Na época da ditadura, a oposição começou a frequentar a casa. Ulysses Guimarães costumava dizer que, se as cadeiras falassem, muitos sonhos não se tornariam realidade;, lembra o chef e empresário Marco Aurélio Costa, 60 anos. Os pratos sofisticados com inspiração na gastronomia francesa, italiana e brasileira que saem todos os dias da cozinha levam um tempero importantíssimo: tradição. ;É uma comida que, daqui a 35 anos, vai ter a mesma qualidade, é clássica. É preciso tratar bem os clientes, sem descuidar em momento algum. Quando você faz o que gosta, o resultado é o sucesso;, completa Marco Aurélio.
Pelo mesmo caminho
Algumas casas, apesar de não terem quase meio século de experiência na capital federal, trilham pelo mesmo caminho quando o assunto é tradição. O Carpe Diem surgiu em 1991, quando cinco amigos resolveram se reunir para montar um restaurante diferente. ;A gente queria um lugar que unisse o bar e o restaurante, algo que não existia na época;, conta o chef e arquiteto Fernando de La Rocque. O estabelecimento unia não só as duas vertentes como tinha ainda uma livraria, uma locadora de filmes, loja de CDs, delicatessen e até caixa eletrônico, tudo no mesmo espaço na 104 Sul.
;A cidade foi evoluindo e a gente foi se adaptando à nova realidade do mercado e ficamos com a ideia inicial. Conseguimos fidelizar clientes com um cardápio que atende Brasília, cheia de gente de outros estados e outros países;, explica Fernando. Além de investir na tradicional feijoada, o restaurante trouxe o conceito de buffet e do preparo na hora de saladas e massas, hoje muito difundido pela cidade. ;O cliente gosta de sentir que ele mesmo preparou aquele prato. E o melhor é que, se ele achar que não ficou bom, a culpa é dele;, brinca.
Mudança de planos
Em 1987, Francisco Ansiliero trocou Santa Catarina pelo Distrito Federal para trabalhar em um ministério. Em menos de um ano, no entanto, largou o funcionalismo público para abrir um restaurante. ;A minha ideia era abrir uma cantina italiana. Um amigo fez um levantamento de mercado e descobriu que o pessoal queria um restaurante com bacalhau, tambaqui e picanha, porque não tinha na cidade;, conta o chef. Francisco também investiu em algumas novidades. Trouxe uma variedade de azeites e um menu especial para crianças. A casa também foi a primeira a ter uma adega climatizada em Brasília.
Um cardápio simples e com qualidade transformou o bacalhau em lascas e a picanha com farofa de ovos em clássicos. ;O tempo é implacável. É ele que mostra o que é ouro e o que é cascalho, e não deixa chance para fazer aventura muito tempo. Vejo com muito otimismo a gastronomia daqui. Tenho convicção de que Brasília vai continuar evoluindo e dentro de não muito tempo será uma referência gourmet nacional;, analisa Francisco.
; Picanha na brasa com farofa de ovos do chef Francisco Ansiliero
Ingredientes
- 1 peça de picanha de 1.200g
- sal a gosto
- 75ml de óleo de girassol
- 75g de manteiga
- 40g de cebola bem picada
- 30g de cebolinha verde picadinha
- 4 ovos
- 1 xícara (chá) de farinha de mandioca artesanal
Preparo da carne
Limpe totalmente a picanha na parte oposta da gordura. Apare o excesso de gordura, se achar conveniente. Corte a picanha em pedaços da mesma espessura. O corte deve ser contra a fibra, pois a facilita a mastigação. Salgue a gosto e coloque a uma distância da brasa viva de forma que não queime, mas também não "chore" (se diz que a picanha chora quando o calor é pouco e o sumo da carne forma algo como gotículas de água). Neste caso, a carne ficará murcha e dura. A carne, mesmo quando bem passada, deve permanecer úmida e suculenta.
Preparo da farofa
Coloque o óleo de girassol para aquecer numa panela de ferro. Mantendo o fogo lato, coloque a cebola e a cebolinha. Mexa até murcharem. Acrescente a manteiga. Numa vasilha à parte, ponha os ovos com clara e gema e misture bem. Coloque sal a gosto, adicione-os à frigideira e mexa até ficarem bem passados. Acrescente a xícara de farinha e mexa bem. Acerte o ponto do sal e sirva imediatamente.