Diversão e Arte

Cresce o mercado de livros que se apoderam de obras de domínio público para recriar novas aventuras

postado em 23/04/2010 08:12
A escritora inglesa Jane Austen (1775-1817) é uma das autoras mais lidas e respeitadas da literatura em língua inglesa de todos os tempos. Para muitos, sua obra é considerada intocável. Nos últimos tempos, porém, uma onda editorial tem causado rebuliços no universo construído pela britânica. A história das irmãs Bennet é famosa no mundo todo. Moças casadouras do interior da Inglaterra do século 18 e protagonistas da obra Orgulho e preconceito, de Jane Austen, agora se transformaram em guerreiras shaolin (um tipo de kung-fu), capazes de combater mortos-vivos comedores de cérebro. Esse é o tema do livro "cover" Orgulho e preconceito e zumbis, escrito numa parceria póstuma entre Jane Austen e o escritor desconhecido Seth Grahame-Smith. Sacrilégio ou renovação? Nerrian Possamai e Tiago Belotti: elogios à paródia de Orgulho e preconceito, mas com muitas ressalvasSegundo Jason Rekulak, editor da norte-americana Quirk Books e cérebro por trás da operação "Paródia Jane Austen", a ideia veio da enorme quantidade de mash-ups (misturas) feitos com filmes, músicas e seriados de TV postados na internet por usuários comuns. "Eu queria fazer algo similar no meu trabalho, mas não queria ser processado por isso. Então, comecei a explorar obras de domínio público. Fiz uma lista de livros populares e cruzei com assuntos que poderiam "melhorá-los" ainda mais. Assim que cheguei ao título Orgulho e preconceito e zumbis sabia que seria um sucesso" explica o editor. "Sou o primeiro a admitir que escrever uma paródia de Jane Austen não é tão criativo quanto escrever uma obra-prima como Razão e sensibilidade. Mas, nós investimos o máximo de criatividade para fazer a melhor versão de Orgulho e preconceito, com zumbis, jamais feita", responde Rekulak com bom humor. Enquete realizada com internautas do Correio apontou um índice de desaprovação das paródias de Jane Austen maior que 50%. Seria orgulho ou preconceito dos fãs da escritora inglesa? Na opinião do editor, a adaptação foi bem aceita tanto por fãs de Jane Austen quanto de "zumbis". "Isto surpreendeu muita gente. Muitos haviam previsto que nenhum dos públicos gostaria do livro", examina o norte-americano. Rekulak sabe o que está dizendo. Seu petardo já vendeu mais de 1 milhão de cópias (apenas a versão em inglês) e uma adaptação para o cinema estrelada e produzida por Natalie Portman já foi anunciada. Duas outras misturas de texto mirabolantes foram publicadas a toque de caixa pela mesma editora: Razão e sensibilidade e monstros marinhos (outra paródia de um livro de Jane ) e Androide Karenina (sim, o clássico do russo Tolstói Ana Karenina, misturada com robôs de aspecto humano). Guerreiros ninjas O cineasta Tiago Belotti (diretor do longa Capital dos mortos, primeiro filme estrelado por zumbis feito em Brasília) e o ator e professor Nerrian Possamai (admirador da literatura de Jane), ambos com 30 anos, leram Orgulho e preconceito ainda na adolescência. A convite do Correio, eles examinaram a adaptação acrescida de mortos-vivos e guerreiros ninjas. "Existe pouca literatura de zumbi. Mas esse é o texto mais refinado que já li. Normalmente, as descrições são mais grotescas. O que talvez não agrade aos fãs de zumbi", observa o cineasta. "Muito do texto original foi preservado, inclusive a ironia com que Jane Austen tratava certos temas. Grahame-Smith entende muito bem o estilo da autora inglesa. Apesar dos embates entre humanos e zumbis, a fleuma britânica resiste", salienta o ator. "Uma coisa que para mim ficou clara é que o cara não entende tanto de zumbis. Numa das passagens, ele descreve um ataque a uma plantação de repolhos porque eles teriam confundido o formato da verdura com um cérebro humano. Isto é um absurdo! Os zumbis se guiam pelo cheiro e não pela visão", observou Belotti. "É preciso relativizar também. Não é um grande livro sobre zumbis e nem uma grande leitura", observa Possamai. De propósito, os escritores de Opúsculo (paródia da série best-seller adolescente Crepúsculo, de Stephenie Meyer) não tiveram cuidado algum com o texto original. Nas mãos do grupo de comediantes The Harvard Lampoon, o excesso de ingenuidade das confissões de Bella sobre o romance com Edward (o galã condenado à vida eterna por ser vampiro) é salientado até o limite do ridículo em trechos assim: "Ele tinha cabelos ruivo-castanhos-aloirados, heterossexualmente aparados. Parecia mais velho que os outros rapazes dali - talvez não tão velho quanto Deus ou meu pai, mas certamente um substituto viável. Imagine juntar a ideia de todas as mulheres sobre o que seria um cara gostoso e fazer uma média disso num único homem. Era ele", descreve Belle na primeira vez que encontra Edwart. História recontada O QUE AUSTEN ESCREVEU (Trecho de Orgulho e preconceito) "É uma verdade universalmente aceita que um homem solteiro possuidor de razoável fortuna deve estar à procura de esposa." COMO GRAHAME-SMITH ADAPTOU (Trecho de Orgulho e preconceito e zumbis) "É uma verdade universalmente aceita que um zumbi, uma vez de posse de um cérebro, necessita de mais cérebros." O QUE STEPHENIE MEYER ESCREVEU (Trecho de Crepúsculo) "Mordi o lábio para esconder meu sorriso. Depois olhei para ele de novo. Seu rosto estava virado para o outro lado, mas achei que sua bochecha parecia erguida, como se ele também estivesse sorrindo." O QUE STEPHENIE JAMAIS ESCREVERIA (Trecho de Opúsculo) "Sobre três coisas eu estava absolutamente certa. Primeira, Edwart talvez fosse, muito provavelmente, minha alma gêmea. Segunda, existia uma parte do vampiro dentro dele - que eu presumia que estivesse completamente fora de seu controle - que queria me ver morta. E terceira, eu incondicionalmente, irrevogavelmente, impenetravelmente, heterogeneamente e ginecologicamente desejava que ele tivesse me beijado." Sinais dos tempos A prática de parodiar textos, peças de teatro ou filmes é tão antiga quanto o nascimento da própria arte. Em Paródia, paráfrase e Cia., ensaio publicado em por Affonso Romano de Sant'anna, o autor registra o uso do termo desde os tempos de Aristóteles. Mas o aumento recente da prática é apontado por Sant'anna como sintoma de uma evolução artística bem do nosso tempo: "Desde que se iniciaram os movimentos renovadores do século 19, e especialmente com os mais radicais do século 20, como o futurismo (1909) e o dadaísmo (1916), tem-se observado que a paródia é um efeito sintomático de algo que ocorre com a arte do nosso tempo. Ou seja: a frequência com que aparecem textos parodísticos testemunha que a arte contemporânea se compraz num exercício de linguagem onde a linguagem se dobra sobre si mesma num jogo de espelhos." O texto do artigo 47 da Lei Federal 9.610/98, sobre direitos autorais, atesta: "São livres as paráfrases e as paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito." Orgulho e preconceito e zumbis De Jane Austen e Seth Grahame-Smith. Editora Intrínseca, 320 páginas. Preço sugerido: R$ 29,90. Opúsculo De The Harvard Lampoon. Editora Novo Século, 141 páginas. Preço sugerido: R$ 24,90.

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