Diversão e Arte

Podridão de almas bêbadas

Livro de contos de Carson McCullers desmascara com ácida elegância os segredos da sociedade norte-americana

Ricardo Daehn
postado em 04/05/2010 07:00
A balada do café triste e outras histórias
Coletânea de sete contos de Carson McCullers. Editado pela José Olympio, com tradução de Caio Fernando Abreu, 194 páginas. Preço sugerido: R$ 39Logo na abertura de A balada do café triste e outras histórias (editado pela José Olympio), a fatia do tradutor de Caio Fernando Abreu apresenta o sentimento de lidar com o material escrito pela (à época da publicação, em 1951) jovem Carson McCullers. Ele exalta a restauração do elo ;com o humano torto e carente de cada um de nós;. Foi na região da Geórgia, irradiadora do blues, e em conformidade com a angústia desse ritmo, que desabrochou a autora de clássicos como O coração é um caçador solitário e Reflexos de um olho dourado (outro adaptado para o cinema, mas rebatizado de O pecado de todos nós). Comparada por Graham Greene a William Faulkner, a representante do ;gótico sulista; conquistou de Tennessee Williams a Edward Albee.

De olhar expressivo ; destoantes dos descritos em A balada do café triste (progressivamente ;vesgos, ; davam a impressão de procurem um ao outro para trocarem sinais de solitário reconhecimento;) ;, McCullers soube repassar, sem explícitos tiques autobiográficos, a inconstância e a má fortuna decalcadas para a literatura. No sexto conto do livro, Um dilema doméstico, Emily, chegada do idealizado Alabama, pena para se acostumar com a rigidez dos costumes cultivados ao Norte. O abuso do álcool e do dedicado marido, Martin, são as muletas dela, capaz de emanar uma ;ansiedade latente;. Sem julgamentos, Carson McCullers rearranja um caótico cenário, com sentenças amorais que exprimem a condescendência do marido: ;Suas mãos procuraram a carne próxima e a dor igualou-se ao desejo na imensa complexidade do amor;.

Primeiro conto de McCullers, Wunderkind (Criança prodígio), contemplado na coletânea, dialoga com a inicial vocação de pianista da escritora, que buscou aperfeiçoamento em Nova York, aos 17 anos. Entre tons dissonantes, que reproduzem Brahms ou Debussy, no texto, a educação sentimental da adolescente Bienchen, com ;lábios que tremiam como geleia;, exaspera o leitor envolto por uma narração cadenciada por um círculo vertiginoso. Tensa (;não havia mais sangue em seu corpo;), a aluna do sr. Bilderbach reflui uma riqueza interior que mescla conflitos à cabal excitação.

Segundo enterro
Numa reconfiguração de Bienchen ; com versão madura e masculina ;, Ferris é o protagonista do conto O transeunte. No reencontro com Elizabeth, a ex-mulher que não via há oito anos, ele procede um segundo enterro, seguido ao do pai (ocorrido uma semana antes). Nas recordações do ;sinistro deslizar dos anos;, ele assume o medo dos anos perdidos e da morte. O azar é parceiro na jornada sentimental em que ;a grande emoção do amor; sentido por Ferris se apresenta quase ;capaz de dominar o pulsar do tempo;. Em certa medida, a escritora teve essa capacidade descrita em prosa ; ela subverteu o fracasso, casando por duas vezes com o mesmo marido que teve o fim dos suicidas.

Aos 37 anos, dotada de paralisia relativa que a faria usar apenas um dos dedos, à máquina, Carson McCullers ; morta em 1967, aos 51 anos ; coadunava com as deformidades que particularizavam com as criações dela. A afinidade permeia contos como Madame Zilensky e o rei da Finlândia, encabeçado pelo chefe de departamento acadêmico sr. Brook e pela compositora mitomaníaca Zilensky. Num jogo que culmina em cumplicidade com a patológica atitude da compositora (na inesquecível imagem de um cão andando para trás) é muito rentável o contato com o exótico hábito da madame ; dona de ;mundo interior desintegrado; ; cujas ;mentiras duplicavam um pouco da existência;.

Relações doentias
Mesmo exaltado pela crítica, O jóquei, que focaliza um neurótico, não alcança a empatia de investidas mais aprazíveis, como o derradeiro Uma árvore, uma rocha, uma nuvem (que acompanha extremada desilusão amorosa) e o corpulento A balada do café triste, esse um tratado em que Amélia, a dona de próspero armazém, enfrenta a dificuldade de transformar as pessoas em ;algo aproveitável;.

Entre tipos como Merlie Ryan (;um homem desmoralizado, amarelo, meio manco e sem dentes;) e Primo Lymon, um corcunda amedrontado pela morte, Amélia não tem outra escolha a não ser a de compactuar com os conterrâneos que ;babavam de gozo com relações doentias e monstruosas;. Apegada ao desenvolvimento de temáticas absurdas ; com conteúdos díspares como ;as estrelas, a razão por que os negros são pretos e a melhor maneira de tratar o câncer; ;, a proprietária do café é apresentada em camadas, algumas polpudas como a do episódio de reatamento com o ex Marvy Macy. Dama irremediável da solidão, Carson McCullers revela o resultado desse encontro, encerrado na descoberta de que ;há o amante e o amado, e cada um vem de mundos diferentes;.

; Trecho do conto A balada do café triste, extraído do livro A balada do café triste e outras histórias (José Olympio editora), de Carson McCullers

"Essa era uma das maneiras como ela demonstrava seu amor por ele. Fizera dele seu confidente nos assuntos mais delicados e vitais. Apenas ele sabia onde a srta. Amélia guardava alguns barris de uísque, perto dali. Somente ele tinha acesso aos talões de cheque e à chave da vitrine de relíquias. Tirava dinheiro da caixa registradora, grandes punhados de dinheiro, e gostava do barulho das moedas batendo dentro de seus bolsos. Ele era o dono de quase todas as coisas na casa, porque, sempre que parecia triste, a srta. Amélia procurava alguma coisa para dar-lhe de presente: agora já não havia quase nada que ela pudesse dar a ele. A única parte de sua vida que ela não dividira com o Primo Lymon era a lembrança de seu casamento de dez dias. Marvin Macy era o único assunto que nunca, de forma alguma, fora discutido entre os dois."

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