Nahima Maciel
postado em 07/05/2010 09:02
No fim de um poema em prosa, Arnaldo Antunes avisa: "E quando o texto acaba a escrita continua." Não sabe explicar muito bem como, mas sente que é assim. O poema não tem título e ilustra um pouco a postura de Arnaldo diante da prática da poesia: muitas vezes, a palavra não é tudo e sim parte de uma estrutura poética. Assim funciona n.d.a., recém-lançado pela Iluminuras.
Em n.d.a., as palavras podem ser coisas e há os tradicionais poemas-objeto que também povoam outros livros de Arnaldo, além de uma combinação inevitável de símbolos gráficos e escrita, mas é na poesia quase prosa, de quatro, às vezes cinco páginas, que está a novidade. O autor garante que não anda pensando em enveredar pela ficção propriamente, mas não exclui a forma narrativa desses longos poemas, como os escritores da geração beat abusavam. "Acho que é um desafio de tentar um formato novo", explica.
N.d.a é a combinação de dois livros. O primeiro traz a produção mais recente e um conjunto de cartões-postais, imagens de placas espalhadas por todo o país e captadas por Antunes nos últimos 10 anos. "Penso em, no futuro, fazer um livro com isso, na verdade produzir um enredo como se fosse uma história em quadrinhos, mas é um projeto de fazer algo colorido, isso é como se fosse uma prévia do projeto maior. São placas que, tiradas do contexto original, têm uma coisa poética da relação do texto com o contexto no qual está envolvido. Tentei criar associações entre as placas. Na sequência acabou tendo quase que um enredo analógico subentendido."
A segunda parte é praticamente um livro inteiro. Nada de DNA tem poemas inéditos de 2006, desenhos e imagens, coisas que Antunes burilou pelos últimos anos e somente agora considerou prontas. Coisas do "baú de guardados", como ele diz. Nos versos, o poeta de 49 anos continua a desfilar as heranças da poesia concreta que marcam muito de sua produção, uma sintaxe na qual referências urbanas, síntese, ritmo e economia estão muito presentes. Abaixo, o poeta-compositor fala sobre o trânsito entre música e poesia, projetos e n.d.a.
Poema
...nenhuma das alternativas
me seduz -
nem a voz do deserto
nem a mão que conduz
nem o sonho desperto
nem o lustro da luz
nenhuma das alternativas
me convence -
nem a bola que rola
nem o time que vence
nem a chuva que chora
nem a água que benze
nenhuma das alternativas
me desperta -
nem a borda que alarga
nem a corda que aperta
nem a boca que amarga
ou o açúcar que empedra...
Entrevista Arnaldo Antunes
Você é mais a família Campos ou Leminski?
Olha, tem uma série de referências, do Haroldo, do Augusto. Eles são protagonistas do movimento da poesia concreta e a obra deles é uma influência constante, tem muita influência do Leminski, de quem fui amigo, tem também nos poemas objetos um diálogo com poemas do Juan Brossa, o poeta espanhol, tem uma coisa também do ready made do Duchamp, de tirar, tem um jogo poético de várias pontes. Minha poesia tem um aspecto que dialoga com a poesia concreta, mas também um aspecto mais lírico, ou que dialoga com poesia popular.
Como a combinação da sintaxe com elementos gráficos forma a sua poesia? Qual a importância dessa combinação?
A minha poesia, de certa forma, anseia outros lugares. É como se a palavra fosse um porto seguro, um território com o qual tenho mais intimidade, mas do qual me aventuro a outros lugares com vontade de entoar. Isso já me levou para o vídeo, a caligrafia, o poema objeto. Nos meus livros, a importância da coisa gráfica é meio fundamental. Alguns poemas, se não acontecessem naquela configuração, não se dariam enquanto poema. Neste livro tem alguns que dá para citar, como aqueles dois poemas circulares, são poemas em que a coisa gráfica é parte estrutural do poema, ela não pode ser dissociada. Muitos poemas meus não podem ser traduzidos para outra forma gráfica porque perdem um pouco o sentido. É como se a coisa gráfica fosse parte, não adorno, mas parte estrutural.
O quanto há do compositor na poesia?
Bastante. Este livro tem muitos poemas muito rítmicos, que têm o impulso rítmico e, claro, isso tem relação com poesia cantada. São territórios que têm essa intersecção comum que é a palavra. Existe um trânsito e essas atividades estão sempre em diálogo. Quando vou fazer uma canção já faço para ser cantada, ou um poema para ser lido, mas existem exceções. Esse trânsito entre linguagens é cada vez mais fluente para todo mundo porque hoje, com computador, você tem música, palavra, imagem, tudo junto. Tem muita coisa que publiquei como poema e anos mais tarde fui musicar. Ou o contrário. Esse movimento é comum.
Sobre as poesias-prosas mais longas de três ou quatro páginas. É novo? Há aí um desejo de enveredar pela ficção ou narrativas mais longas?
Foram surgindo dessa forma, não foi uma coisa voluntária. Em alguns livros anteriores, havia alguns poemas um pouco maiores. Desta vez tem alguns maiores ainda. Mas, em geral, o tamanho não passa de uma página e este livro (n.d.a.) tem uns cinco ou seis de quatro páginas. Não sei se são mais narrativos - tem um mais narrativo, que é aquele da festa, de uma pessoa que entra na festa mas está deslocada -, mas em geral meus poemas não têm uma coisa de narrativa, são mais associativos, mais formados por analogias. Prosa é um outro tipo de registro. Já fiz algumas coisas pequenas. O que pratico mais eventualmente é a prosa mais ensaística como 40 escritos e estou pensando em publicar Outros 40, com reunião nova de ensaios.
No último disco, camisetas ilustram a capa do disco. Você costuma usar camisetas para se expressar, com dizeres e símbolos? O que acha disso?
Não, curiosamente não gosto de camisetas estampadas, só uso lisas, mas acho um barato ver meus escritos em camisetas. Mas eu, pessoalmente, não gosto de camiseta estampada. Eventualmente posso usar, não é um princípio rigoroso. Agora, tem um lado da cultura pop com camisetas com dizeres, seja poema seja nome de uma banda, tem um lado da cultura pop muito interessante aí, por isso a gente colocou. Na verdade, é o cenário do show, como se fosse um painel da cultura pop. Ie ie ie lembra várias coisas da cultura pop, a capa é baseada em HQ.
Se sente mais roqueiro ou poeta?
Acho que não tenho uma coisa de priorizar a atividade, as coisas caminham juntas. Não me sinto comprometido com a ideia de especialização (poeta ou compositor). São atividades que cerco e convivo. Acho que essa coisa de a pessoa trabalhar com poesia e música popular não é estranha, a gente tem vários exemplos. Vários poetas transitam pela música popular. É um trânsito que não é estranho. O Brasil tem uma sofisticação no texto cantado que não tem em outros lugares. Poucos países podem se comparar com a tradição brasileira. Temos Caetano, Chico, Noel, Lamartine, Gil , uma lista enorme que realmente tem um pé na poesia cantada muito grande. É uma discussão antiga. Obviamente são linguagens diferentes, não se pode considerar o mesmo trabalho em uma linguagem. A poesia na canção tem que se adequar a uma série de dados musicais e na poesia você tem outras questões que não pertencem à canção, mas não por uma questão de valor. Isso acaba sendo uma postura preconceituosa que remonta ao século 19, quando as coisas eram muito mais territorialmente isoladas uma da outra.
O que mais curtia e o que menos curtia nos Titãs?
Acho que é o trabalho coletivo, que também era a grande dificuldade. Todas as decisões eram muito democráticas, coletivas, isso era uma coisa superlegal porque um é parâmetro do outro, mas ao mesmo tempo é o que limita a colaboração de cada um. Coisas que eu compunha, por exemplo, não cabiam naquele conceito e foi o que me levou a fazer um trabalho que não me levasse a dividir esses parâmetros. O que eu gostava era o que me limitava. Mas acho que o que gostava mesmo era a coisa da farra, da cidade, da continência.