Em 1844, as donas de casa e os cozinheiros do Brasil ganharam um aliado na cozinha. Naquele ano, foi publicado o primeiro livro de receitas culinárias do país, o Cozinheiro imperial, de um autor que preferiu não ser identificado, assinando a obra apenas com as iniciais R.C.M. Apesar da linguagem formal, a obra se dirigia sem rodeios àqueles que colocariam as receitas em prática, seja na Corte do Império ou nas mais modestas casas de família.
Os pratos descritos no livro carregam um pouco da história e das raízes culinárias brasileiras. E, por incrível que pareça, podem fazer parte do cardápio moderno. O Cozinheiro imperial é recheado de receitas de sopas, caldos, vitelo, carneiro, veado, aves, lebre, rãs, peixes, mariscos, legumes, massas, doces, e, é claro, sugestões para banquetes. Na época, mostra a obra, a palavra adubo significava tempero, azeite de oliva era azeite doce e a medida mais usada era o arrátel, que equivale a 459g. O autor parece ter se inspirado em outro livro da época que fazia muito sucesso em Portugal: O cozinheiro moderno, do chef francês Lucas Rigaud, que costumava cozinhar para a rainha Maria I.
A culinária brasileira começava a se formar com influências dos costumes portugueses, indígenas e africanos. De um lado, os portugueses de famílias ricas tentavam fabricar um verdadeiro banquete a cada refeição, e as pessoas comuns enfeitavam de temperos a comida do dia a dia. ;No Rio de Janeiro, que abrigou a Corte real por tantos anos, era mais comum o consumo de arroz, pão de trigo, vinho, azeite de oliva e presunto, pois eram alimentos essencialmente europeus e, na maioria das vezes, importados do Reino. No Brasil, os filhos de famílias ricas eram educados na Europa e traziam consigo novos hábitos e costumes;, explica Fabiana Nalon, professora de história da alimentação da Unieuro e mestre em nutrição humana.
Desafio
Para saber se as receitas do Cozinheiro Imperial podem ser postas em prática na realidade de hoje, o Correio pediu ajuda a dois renomados chefs. Para Augustus Marcondes, do Bottarga Ristorante (QI 5 do Lago Sul), o desafio foi preparar a sopa de abóbora e a alcatra de vaca à brêza. ;O que temos aqui é a raiz da nossa gastronomia. É uma cozinha básica sem muito luxo, mas ao mesmo tempo refinada. O que muda é o método de cozimento. Naquela época, eles usavam fogão a lenha e muito carvão. Isso quer dizer muitas horas no fogo;, conta o chef.
O livro não traz medidas certas nem lista de ingredientes. O texto é corrido e explicativo. ;Ele não tem nada certinho e isso é legal, porque você pode ir provando enquanto prepara. Quem tem uma certa noção de culinária consegue colocar em prática. A receita de arroz gordo, por exemplo, que precisa de um bom caldo e deixa o grão mais empapado, é muito parecida com a do risoto. E por aí vai. Tem é que testar mesmo;, sugere Marcondes. O chef substituiu a nata da sopa por creme de leite e usou croutons no lugar do miolo do pão. Para a carne, fez o ragu de legumes, acompanhamento sugerido pelo autor, com tomate-cereja, abobrinha, aipo, cebola roxa e completou o molho com caldo de carne.
Carril de galinha à asiática e creme de chocolate foram os pratos escolhidos pela chef Alice Mesquita, do restaurante Alice (QI 17 do Lago Sul). ;Segui bem a receitas, só adicionei um pouco de suco de laranja com o suco de manga, para dar um pouco mais de aroma, e coloquei açafrão e curry. Adorei o livro. Ele não é nada complicado. Em 1844, já haviam se formado todos os elementos da cozinha de hoje;, comenta a cozinheira. A receita da sobremesa demandava sal, e a chef obedeceu. ;É para destacar o sabor do chocolate. Mas usei flor de sal para dar mais charme;, completa Alice.
CONFIRA
A sétima edição de Cozinheiro imperial, publicada em 1877, está disponível para download no site da Fundação Joaquim Nabuco: . O livro está no Acervo Digital, na seção de obras raras e preciosas.
Entrevista
O Cozinheiro imperial foi publicado no Brasil e editado em Portugal em 1844. Quais eram os costumes gastronômicos da época?
Na Europa, em se tratando de século XIX, pode-se afirmar que os padrões burgueses estavam no auge. A cozinha francesa já estava bem cosolidada com técnicas culinárias que até hoje são empregadas nas escolas da cozinha clássica. A França já havia vivenciado todo o luxo dos reinados de Luís XIV e Luís XV e muitos chefs dessa época deixaram um legado de técnicas culinárias e receitas escritas. Também já existiam restaurantes e cafés em Paris, onde a alta cozinha era replicada e pratos que antigamente eram exclusivos dos grandes castelos de reis passaram a ser acessíveis à classe média e alta. A França ditava a moda na cozinha e nos modos à mesa e toda a classe abastada de outros países europeus copiava os costumes franceses.
No Brasil existia um abismo entre o que era a comida do dia a dia das pessoas comuns e o que os portugueses de famílias ricas tentavam praticar. Por exemplo, no Rio de Janeiro, que abrigou a corte Real por tantos anos, era mais comum o consumo de arroz, pão de trigo, vinho, azeite de oliva e presunto, pois eram alimentos essencialmente europeus e na maioria das vezes importados do Reino.
A mistura das técnicas da Europa com o tempero local é o que caracterizou a gastronomia brasileira? Como foi esse processo?
Foi um processo de adaptação e necessidade de sobrevivência. O colonizador português tinha costumes alimentares ligados a sua terra natal, por exemplo, o uso da carne de porco, galinha, o vinho, azeite, pão de trigo, bolos, doces, conhecimento acerca do uso de sal e especiarias como cravo, canela, pimenta preta e noz moscada. Ao chegar aqui o colonizador encontrou um ambiente com muitos produtos que não eram conhecidos na Europa, por exemplo a mandioca e seus derivados, principalmente a farinha que era a base da alimentação do índio e muitas frutas diferentes (maracujá, cupuaçu, açaí, guaraná, taperebá, abacaxi....), sem falar do milho e suas variações (farinha, canjica), da abóbora e espécies diferentes de feijão.
Ao tentar impor suas práticas culinárias os portugueses se viram obrigados a fazer uso dos ingredientes locais e assim surgiu a cozinha brasileira. Por exemplo, na falta de marmelo fizeram marmelada com outras frutas (goiaba, mamão); Na falta da farinha de trigo fizeram o bolo com a farinha de milho ou com a massa da mandioca; para fazer mingau, na falta do leite de vaca (já que o gado ainda não era tão comum por aqui) usaram o leite de coco e para os doces de amendoas trocaram por amendoim....
Importante notar que o termo "tempero local" fica mal empregado já que, todo o tempero veio dos hábitos europeus. Aqui não havia cebola, alho, coentro, salsinha, cebolinha... tudo isso era costume do portugues. O índio também não usava sal (só pimenta) e também não conhecia a fritura. Foi com os portugueses que absorvemos tal costume.
Os cortes de carnes, aves, cordeiros, vitela, peixes e veados são todos exemplificados no livro, isso também é característica do período? O bom cozinheiro tinha que preparar tudo em casa?
Muitos chefs famosos deixaram registros escritos de suas receitas e técnicas culinárias. Como a indústria de alimentos ainda estava começando, tudo tinha que ser artesanalmente preparado pelo próprio chef e seus ajudantes.
O livro também trata das "técnicas de trinchar e servir bem à mesa", a etiqueta também era importante na época?
Todas as civilizações tiveram seus códigos de comportamento e os modos à mesa não fogem dessa regra. A atual etiqueta á mesa é uma herança da Idade Moderna e muitos costumes como a ordem em que os pratos são servidos, o uso de talheres, toalhas de mesa, vem desa época. Os índios comiam em cuias, usavam as mãos e sentavam-se em esteiras no chão, então, todos os modos a mesa que praticamos hoje é herança do colonizador.