Diversão e Arte

Festival de Cannes consagra a obra poética e sobrenatural de Apichatpong Weerasethakul

postado em 30/05/2010 15:27
O cineasta Apichatpong Weerasethakul por pouco não embarcou para a 63; edição do Festival de Cannes. Os conflitos violentos entre parte da população (os camisas vermelhas) e o governo quase bloquearam a viagem. No caminho para o aeroporto, Bangcoc queimava. ;Uma fumaça negra cobria o céu, ouvíamos barulho de tiros. A cidade e as pessoas estavam morrendo;, escreveu um assistente do diretor, em carta à imprensa. A taquicardia política, no entanto, não transpareceu nas atitudes do cineasta de 39 anos. Primeiro vencedor tailandês da Palma de Ouro, ele seria premiado por Uncle Boonmee who can recall his past lives. Vestido de branco, era a imagem da serenidade. ;Meu país vive uma profunda crise de classes. Mas meus filmes são gentis;, observou, na Croisette, à publicação americana The Hollywood Reporter.

Pode parecer um sinal de covardia: em meio ao turbilhão de uma nação fraturada, Apichatpong (que, por causa do nome complicado, adotou o apelido Joe) prefere adentrar um país interiorano e fantasmagórico, povoado por espíritos e lembranças de vidas passadas. Faz filmes que, na falta de adjetivos mais precisos, são chamados de transcendentais. Mas, se a temática não indica engajamento com as crises do momento, o próprio cinema do diretor ; pessoal, avesso às cartilhas de gêneros cinematográficos, abstrato e lírico ; é um belo argumento a favor de uma arte livre, sem compromissos com o mercado ou com interesses governamentais. Corajoso, portanto.

CIDADÃO CANNES - De Gilles Jacob. Tradução de Maria Lúcia Machado. Companhia das Letras. 392 páginas. R$ 54Nos bastidores das tensões urbanas, o diretor travou batalhas com o poder. Inconformado com a obrigação de cortar três cenas do longa Síndromes e um século, de 2006, Apichatpong enfrentou a censura estatal e preferiu mantê-lo longe das salas tailandesas. Protestou em entrevistas e organizou um movimento de artistas por liberdade de expressão. Mas o prestígio crescente do diretor em festivais nada tem a ver com esses e outros protestos. O que deslumbra jurados e críticos é um estilo original, contemplativo e, aos olhos ocidentais, exótico.

Essa janela para a alma, entretanto, ainda está confinada às programações de mostras e cinematecas. Mesmo com o aval do júri de Cannes, Uncle Boonmee ainda não tem distribuição garantida no Brasil. Por aqui, nenhum longa-metragem do diretor entrou em cartaz. Eternamente sua (2002, vencedor da mostra Um Certo Olhar, em Cannes), Mal dos trópicos (2004) e Síndromes e um século foram exibidos em Brasília numa única ocasião, na mostra Oriente desconhecido, em setembro de 2008. O excelente longa de estreia, Misterioso objeto ao meio-dia, de 2000, permanece inédito. Os distribuidores (e não apenas os brasileiros) se intimidam diante de um cinema que soa alienígena, muito diferente das narrativas viciadas do circuito ;de arte;.

Alucinações
Em Uncle Boonmee, um homem doente, à beira da morte, recebe a visita de espíritos e por flashes de vidas passadas. A fantasia norteia a sinopse do filme que conquistou o júri presidido por Tim Burton (Alice no País das Maravilhas). Mas as alucinações desorientam o espectador. ;Sou cético em relação à crença em vidas passadas, mas acho fascinante. No nosso país, quase todo mundo acredita em fantasmas;, observou. Os principais cenários vêm da região seca, árida e mística onde o cineasta, filho de médicos, cresceu. O próximo projeto, Utopia, promete um desvio geográfico e temporal: o herói é um homem pré-histórico.

Recebido como obra-prima pela maior parte da crítica, Uncle Boonmee desbancou figurinhas conhecidíssimas como Ken Loach, Abbas Kiarostami, Mike Leigh e Alejandro González Iñárritu, que competiam na edição. Um feito e tanto para um diretor que, a cada filme, parece reinventar o próprio estilo. Em Mal dos trópicos, vencedor do prêmio de júri em Cannes, a narrativa é partida ao meio: um drama intimista se transforma em uma fábula de reencarnação. ;A vida não faz muito sentido. Ela apenas segue em frente. Como o cinema;, afirmou o diretor, que sempre transporta detalhes da própria vida (a homossexualidade, inclusive) para os roteiros.

Mas as tentativas de explicar as imagens produzidas pelo diretor (que, em setembro, participa como artista plástico da 29; Bienal de São Paulo) são sempre insuficientes: o toque de mágica desse olhar, finalmente consagrado com a Palma de Ouro, só se materializa completamente em uma grande tela de cinema.

O reinado de Burton
O júri presidido por Tim Burton chegou ao Festival de Cannes como uma incógnita e saiu sob elogios da crítica. A decisão de premiar o filme tailandês, em detrimento de produções mais acessíveis e realistas como Another year (Mike Leigh) e Of gods and men (Xavier Beauvois), foi recebida como sopro de audácia. ;O melhor júri de todos os tempos;, definiu o jornalista Mark Peranson, do site Cinema Scope. Poucos torceram o nariz para a decisão, caso do jornal francês Le Figaro, que classificou o vencedor como ;tedioso e incompreensível;. Curiosamente, Burton ainda não havia assistido a nenhum filme de Apichatpong Weerasethakul antes de Uncle Boonmee. Nas escolhas dos jurados, entretanto, nem tudo foi radicalismo: a fita francesa Tournée garantiu ao ator Mathieu Amalric o prêmio de direção, e o drama Of gods and men ficou com o prêmio de júri, composto por nomes como o ator Benicio del Toro, as atrizes Kate Beckinsale e Giovanna Mezzogiorno, o cineasta Shekhar Kapur e o compositor Alexandre Desplat.

Jacob, o pescador de filmes

No inverno de 1990, uma geada desaba sobre Nova York. Mas nada, nem o frio polar, desanima Gilles Jacob. O diretor do Festival de Cannes tem uma missão urgentíssima: convencer o diretor Martin Scorsese a exibir Os bons companheiros, um ;filme popular inteligente;, no Palais des Festivals. O cineasta parece compartilhar a euforia. Fala sobre pintores do Renascimento e Nouvelle Vague. Mas Jacob percebe que o lançamento não será dele. O motivo da desistência só foi desvendado anos depois: o filho do produtor do filme, Irwin Winkler, dirigiu uma produção rejeitada por Cannes. Em troco, o pai ressentido ordenou a vingança contra a maior mostra de cinema do mundo.

Do episódio, narrado no livro de memórias Cidadão Cannes (Companhia das Letras), Jacob extraiu uma lição cruel: ;Por mais necessários que sejam o entusiasmo e a energia, a pesca dos filmes exige uma boa dose de obstinação, mas também de fatalismo;. Há 30 anos, o homem é um especialista nessa ;pescaria;. De crítico cinematográfico, foi promovido a espectador privilegiado da Croisette. No outono de 1975, recebeu uma ;estranha proposta; de Robert Favre Le Bret, presidente do festival, e de Maurice Bessy, diretor-geral: dirigir Cannes. Desde 2002, ocupa a presidência da mostra.

A oportunidade parecia irrecusável: viajar e ver filmes. Mas havia um lado perverso no acordo. Jacob entraria no mundo nem sempre agradável das negociações pela programação de um evento cujo prestígio precisaria ser mantido a todo custo. Um trabalho quase nunca tranquilo. As relações desconfiadas entre os europeus e Hollywood rendem mal-entendidos, criam inimizades e tensões às vezes políticas. Eram delicadas as manobras entre a curadoria do evento e o governo da União Soviética, por exemplo. A rivalidade com Veneza e Berlim também provocou rusgas. ;Um festival são filmes mais dramas;, resume. Eis a equação.

No livro, os casos são narrados a pinceladas, em capítulos curtos e desordenados, com as licenças poéticas de um ;filme de autor;. O próprio Jacob se aventurou do outro lado do espelho e dirigiu documentários como Liberté (1989) e Histoires de festival (2002). Em 2010, foi exibido na mostra, fora da competição, o longa Gilles Jacob, o agrimensor da Croisette, de Serge Lé Peron. A trajetória sugere uma vida a serviço das telas. Mas Cidadão Cannes desmente essa ideia, pelo menos em parte, quando narra as lembranças da família judia de Jacob, que viveu na França durante a ocupação nazista.

E o cinema sempre retorna ao centro da narrativa, de uma forma ou de outra. Nas cenas surrealistas do enterro de Federico Fellini, nos encontros com Clint Eastwood e Sharon Stone; ;Ainda hoje teria dificuldade em definir se prefiro os filmes ou os diretores. Os filmes são o que permanece, são a obra acabada, são o mármore eterno ; e são o prazer; os diretores são o sofrimento;, explica.

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