Nahima Maciel
postado em 30/05/2010 15:50
Poucos violoncelistas se aproximam da categoria do pernambucano Antonio Meneses, 53 anos. Ele senta no mesmo banco reservado a Yo Yo Ma, já gravou com Herbert von Karajan e durante anos integrou o Beaux-Arts Trio ao lado do pianista Menahem Pressler, com quem, até hoje, faz recitais mundo afora. Meneses deixou o Brasil aos 16 anos para estudar na Alemanha com o músico Antonio Janigro. Hoje, mora em Basel (Suíça), de onde se desloca dezenas de vezes ao ano para temporadas que incluem mais de 50 concertos. Nos intervalos, dá aulas no Conservatório de Berna. Foi entre uma apresentação em Londres e outra em Brasília, na última terça-feira, que ele concedeu ao Correio a entrevista abaixo. Você está fora do Brasil há mais de três décadas, mas nunca deixou de incluir o país na sua agenda. O que mudou na cena musical brasileira nos últimos 30 anos?
De um certo lado aconteceram coisas incríveis, coisas que quando era jovem nunca imaginaria que seriam possíveis. O fato de hoje existir uma orquestra como a Osesp era impensável. Só os Estados Unidos e a Europa tinham esse tipo de coisa. Mas a música fez progressos. Estamos em outros centros musicais e há uma vontade maior de construir um trabalho mais aperfeiçoado. Temos uma ótima orquestra em Belo Horizonte, a de Brasília melhorou muito e o Rio tem boas orquestras. Isso fez uma grande diferença. Por outro lado, lugares em que isso poderia ter acontecido ficaram estagnados. No Nordeste, houve pequenos princípios de tentar fazer uma coisa interessante, mas quase todos falharam. É uma pena que um país tão grande quanto o Brasil e com tantas possibilidades não consiga vencer esse problema: é principalmente no Sudeste que estão os grandes centros musicais.
Ainda é preciso sair do país para ser solista?
É preciso sim. Muito. A maior parte dos grandes solistas brasileiros vive fora do Brasil. Eu, Cristina Ortiz, Nelson Freire. Você não pode vencer no Brasil sem ter vencido fora. Essa é a realidade. É muito raro e difícil conseguir fazer isso.
Em relação a seu trabalho com os compositores brasileiros, você tem um compromisso com a música contemporânea brasileira?
De certa maneira, sim. Tenho que confessar que a música brasileira, durante grande parte da minha carreira, me interessou pouco. Eu tocava uma ou outra coisa, mas não muito. E não é só a música brasileira, é a música moderna de forma geral. Mas fiz muita música moderna com o Beaux-Arts e isso me despertou a ideia de que é importante trabalhar também com os compositores. Me vi numa situação em que praticamente não conhecia nenhum deles. Nunca tinha estado com Almeida Prado, por exemplo, e me lembro que assisti um recital onde foram tocadas as Cartas celestes. Fiquei realmente muito impressionado e achei que seria uma pessoa fantástica para escrever uma obra para violoncelo. Ele escreveu uma sonata muito boa, que estreei há alguns anos. E me lembro que vi uma peça do Clóvis Pereira, lá do Nordeste. Pensei que seria interessante ter obras compostas por ele nesse estilo nordestino, que é uma coisa que se conhece pouco fora do Brasil. O pessoal lá conhece samba e bossa nova, mas não conhece o que se faz tanto no Nordeste quanto no Sul.
E o público tem fome disso?
Acho que sim. O público brasileiro gosta muito da música contemporânea. Toda vez que toco uma coisa nova a curiosidade é muito grande. Me lembro que uma vez toquei no Rio um concerto de Lutoslawski, um grande compositor polonês, e juntei justamente com Dvorak para poder ter o contraste, que é realmente enorme. Um compositor como Dvorak escreveu obra totalmente romântica no fim do século 19 e o polonês escrevendo 80 anos depois uma obra que não tem nada a ver com aquilo. E foi incrivelmente bem recebida pelo público, a sala do Municipal totalmente lotada. Na Europa isso não acontece sempre; o público é muito mais reacionário e conservador.
Essa é uma forma de oxigenar a música erudita para não deixar que cole ao estigma de coisa de museu?
Claro. Justamente. Isso é importante. A música contemporânea tem muita coisa interessante a oferecer. É claro que a história vai dizer o que realmente importa. Mas é importante experimentar e apresentar. Vou tocar agora no Rio de Janeiro um concerto escrito pelo Friedrich Gulda, um grande pianista austríaco. É um concerto para violoncelo e banda de música. Ele utiliza diversos estilos de música popular da época dele, o jazz e a música típica das montanhas da Áustria, misturando com momentos totalmente modernos. É um concerto de sucesso incrível.
Este ano o Concurso Nelson Freire teve inscritos em vários instrumentos, mas nenhum pianista. Os organizadores pediram a professores que estimulassem seus alunos. Você nota esse desinteresse em relação ao violoncelo?
Não sabia dessa situação. O que acontece é que na nossa música sempre foram necessários aqueles pioneiros, aquela professora que se dedicou a vida inteira aos jovens como foi o caso da minha. Ela precisou ter 12 ou 13 alunos para sair dois melhorezinhos, como eu e o Morelenbaum. Muitos ficaram em orquestra ou fizeram violoncelo e são engenheiros. No piano é a mesma coisa. Talvez esteja faltando esse tipo de professor, gente que se dedique totalmente a lecionar. A universidade dá um diploma. Uma coisa que em princípio um pianista do porte do Nelson Freire, por exemplo, não precisa. Eu fiz universidade, mas é que no meu caso, depois que saí do Brasil, indo para fora só podia estudar em universidade.
Como você avalia que um concerto foi bom para o público?
É difícil de dizer. Já me aconteceu muitas vezes de tocar um concerto com uma orquestra duas, três vezes na mesma cidade. Cada vez é diferente e cada vez a reação do público é diferente. Por incrível que pareça, sempre que achei que toquei especialmente bem o sucesso foi menor. Depende do que você considera tocar bem. Muitas vezes toquei e achei que não foi tão perfeito como gostaria que fosse e o público ficou totalmente feliz.
O que é tocar bem?
Tocar bem é comunicar. Quando você tenta demais ser bom você está se concentrando em ser bom, enquanto o que o público espera é comunicação. Para ele, se uma nota sai desafinada ou tem uma falha, isso não importa muito. É claro que estamos falando de um nível muito alto, não é errar do começo ao fim, é outro nível. O público se emociona com a comunicação. (Público) chorando ou alegre, o sucesso é maior.
Qual é o seu maior patrimônio?
Acredito que seja o que eu aprendi. Porque sem isso eu não seria nada. O talento sozinho não faz um artista, você tem que estar sempre aprendendo e renovando suas ideias. É o patrimônio maior que uma pessoa pode ter.
Ao mesmo tempo que o trabalho do solista é muito solitário, ele precisa da coletividade para que a música aconteça. Como você lida com isso ?
Por natureza sou uma pessoa bastante tímida. E por isso mesmo a ideia de ser um solista é um pouco contra minha natureza. Quando era garoto, meu pai tinha que me forçar a tocar para outras pessoas. Não é uma coisa natural para mim. Tenho que, de certa maneira, me dar um empurrãozinho toda vez que vou entrar no palco. E aceitar a ideia de que não existe outra possibilidade. Se eu quero fazer música tenho que entrar em contato com mil, duas mil pessoas.
Você tem rituais antes de entrar no palco para abstrair o público ou você aceita as pessoas?
Eu aceito. Foram necessários muitos anos para me acostumar. Mas gosto muito da minha privacidade, é muito importante pra mim. Dou entrevistas, como agora. Mas não sou uma pessoa dada. Tem gente que precisa absolutamente disso, do estrelato, de ser notado. Eu tenho um certo receio disso. Faço o que é necessário.
E rotina de estudo?
Não existe uma rotina porque estou sempre viajando e cada lugar tem uma rotina diferente. (Nos quatro dias que passei) em Brasília pude estabelecer uma rotinazinha bastante boa. Na Suíça tenho que passar o dia inteiro dando aula em Berna, então saio cedo e volto tarde. Nesse dia praticamente não estudo.
O fato de você ter um repertório consolidado, uma carreira sólida e tocar muitos concertos e recitais reduz sua necessidade de estudo?
Não! Tenho que estudar. Acho que a coisa mais importante não é ser apenas um grande violoncelista, um grande músico, mas um grande artista também. Tem gente que diz ;artista você é ou não é;. Mas acho que você pode adicionar um pouco. Isso depende de trabalhar muito e, no seu estudo, já imaginar o que um artista faz com o que tem. Não podemos nunca esquecer que música só existe no momento em que é tocada. No papel ela não existe. E o artista é a pessoa capaz de transformar aquele monte de pontos e linhas em um momento memorável, inesquecível.
O que gosta de ouvir?
Gosto de ouvir boa música. Não importa de que tipo. Não compro um CD de jazz, mas ouço jazz no rádio, na televisão. Muitas vezes estou viajando de carro de Berna para Basel naquele momento em que passam uma hora de jazz e gosto de ouvir. Gosto de música popular brasileira, mas não conheço muito, não compro, tenho poucos discos.
O Beaux-Arts gravou mais de 60 discos.
E você continua gravando, tem uma discografia enorme. Na música pop, os artistas já entenderam que o futuro não está no disco e sim no show e na internet. E na música erudita?
Não sei, isso não me inquieta muito não. O que eu vejo é que existem cada vez menos lojas de discos e quando há praticamente não tem nada de clássico. Isso me dá um pouco de medo. Aquela ideia de chegar numa discoteca e ficar procurando novidades, como eu gostava, acontece cada vez menos.