;Muita gente fala em Viramundo. Vozes múltiplas, falas diferenciadas. Tentemos qualificar essas vozes e montar um sistema de relacionamento entre elas.; Assim, sem rodeios, começa o texto do primeiro filme analisado por Jean-Claude Bernardet, no livro Cineastas e imagens do povo, sobre o documentário Viramundo (1965), de Geraldo Sarno. Na obra lançada em 1985, um dos primeiros no Brasil dedicado exclusivamente ao cinema documentário, Bernardet, apesar de negar a visão de panorama, organiza um painel de títulos de curta-metragem lançados nas décadas anteriores.
Lido e comentado por gerações de estudiosos, o livro cita muitos dos filmes que dificilmente foram exibidos nas salas escuras. Daí, dá para se entender a missão da mostra Cineastas e imagens do povo, que já passou por Rio de Janeiro e São Paulo e agora ocupa o cinema do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), de hoje ao dia 27, com o total de 38 filmes de curta, média e longa duração. Em que, infelizmente, não participa Viramundo.
No excelente catálogo organizado para a mostra (quase uma edição de complementação do livro), o curador Simplício Neto admite que a ausência física dos objetos de estudo de Bernardet foram o principal combustível para o esforço de exibição das películas. ;E quando os filmes não existem? Quando ainda estudante universitário me deparei com a força desse livro. E não falo só da acuidade da análise fílmica, que pude comprovar com prazer, mais tarde, ao conseguir assistir a alguns poucos filmes citados ; fruto de uma busca pessoal nem tão obsessiva, claro, mas que se mostrou constante. Anos fuçando em sessões especiais de mostras retrospectivas dispersas .... E para quê? Só para ;ver aquele filme que Bernardet citou no Cineastas;;.
;O Cineastas apareceu um pouco antes do que viria a ser chamado o boom do documentário. Embora o livro não trabalhe os documentários de longa-metragem, que aparecerão nos anos 1990, ele tem esse interesse sobre realidade e sobre os procedimentos das narrativas, em como os filmes são construídos. Ele apareceu num momento em que as pessoas estavam se interessando pelo assunto;, reflete Bernardet sobre a importância histórica alcançada pela obra.
É bom ressaltar que os títulos analisados por Bernardet, a maioria produzido durante a década de 1960, apresentam o impacto de inovações tecnológicas como o uso de câmeras mais leves e gravadores de som direto. Talvez, venha daí a excessiva preocupação do autor com as ;vozes múltiplas; dos documentários, seguindo o jogo do ;quem fala o que para quem?; ;De forma meio escondida, o Cineastas faz outras propostas que não são necessariamente relativas aos documentários. São propostas mais gerais. A básica é a forma é o conteúdo. É fácil deduzir isso no livro. Eu não discuto as questões dos operários e etc. A temática é o documentário, sem dúvida. Mas ele tem outros temas. Eu estava bem consciente disso;, afirma o autor.
Para a mostra, foram incluídos na soma dos que serão exibidos, filmes que Bernardet comentou em apêndice da segunda edição, lançada em 2003, pela Companhia das Letras. Entre eles, Aboio, de Marília Rocha, Casa de cachorro, de Thiago Villas Boas e À margem da imagem, de Evaldo Mocarzel, todos lançados nos anos 2000. Rejeitando a ideia de tendências e analisando separadamente cada filme, o crítico discorre sobre vários aspectos fílmicos, quase como quando a luz é lançada dentro de um prisma e se divide em diversas cores.
TRÊS PERGUNTAS// JEAN-CLAUDE BERNARDET
Por que o Cineastas e imagens do povo ganhou tanta repercussão?
Primeiro porque é um bom livro (risos). Acho que o Cineastas apareceu um pouco antes do que viria ser chamado o boom do documentário. Embora, o livro não trabalhe os documentários de longa-metragem que irão aparecer nos anos 1990. Ele tem esse interesse sobre realidade e sobre os procedimentos das narrativas. Como os filmes são construídos. Ele apareceu num momento em que as pessoas estavam se interessando pelo assunto. Além do mais, o Cineastas de forma meio escondida, faz outras propostas que não são necessariamente relativas ao documentários. São propostas mais gerais. A básica é ;A forma é o conteúdo;. É fácil deduzir isso no livro. Eu não discuto as questões dos operários, e etc. O livro teve sim vários aspectos possíveis, várias abordagens. A temática é o documentário, sem dúvida. Mas, ele tinha outros temas. Eu estava bem consciente disso.
Nos depoimentos do catálogo, alguns diretores se mostram extremamente deslumbrados em razão dos filmes terem sido analisados pelo senhor. Seria um raro caso em que a análise se transforma em algo maior do que a própria obra analisada?
Essa é uma questão que se levanta nas análises de obras artísticas. Uma obra medíocre pode motivar a
um bom analisador ou historiador a escrever um texto que se torna mais importante do que a obra de onde partiu. Pode acontecer o inverso: um texto que nunca chega a altura do filme. E às vezes, o texto pode se desgrudar do filme. Tem um texto Práxis do cinema, de Noel Burch que se tornou antológico em que ele descreveu uma cena de Nana, de Jean Renoir que não era nada do que ele dizia. E ela manteve assim no livro porque era como a cena ficou marcada na memória dele. A análise é sim uma criação. Quando escrevo sobre o Bressane, nunca me canso da intensidade da minha emoção em relação aos filmes dele. Existem filmes de menor porte que, em função das preocupações do crítico ou do jornalista, podem sugerir textos que se tornarão mais significativos para a sociedade ou no meio profissional do que o próprio filme. Mas, não estou dizendo que isso tenha acontecido comigo.
O senhor alterou alguma das análises na 2; edição do livro publicada em 2003?
Eu não altero os textos. Eu os considero documentos de época. Poderia eventualmente ter colocado uma nota. Se for para alterar, é preciso alterar toda a concepção do texto. Do mesmo modo que em Brasil em tempo de cinema que também foi editado pela Companhia das Letras, houve pequenas alterações de revisões porque revisores são pessoas muito chatas e tiraram erros de concordância e sei lá o quê. Eu mesmo não adultero os textos.