Ricardo Daehn
postado em 29/06/2010 07:00
A morte prematura, aos 54 anos, não foi o único fator a aproximar o russo Andrei Tarkovski do polonês Krzysztof Kieslowski, contemporâneos cineastas com obras mais comprometidas com fundos filosóficos. Partilhando do sufocamento, em meio socialista, a dupla mais cultuada do Leste Europeu condensou, em produção enxuta, um teor melancólico infiltrado por questionamentos religiosos e artísticos.
O reconhecimento máximo aos 24 anos de profissão de Andrei Tarkovski possivelmente tenha partido do lendário Ingmar Bergman, que notou nele uma linguagem cinematográfica capaz de agarrar a vida ;como aparência, como ilusão;. Daí, talvez, a dificuldade no ;entendimento; dos longas que o russo comandou (no senso comum, sempre belos, mas inatingíveis). ;O rigor visual dele vem do valor pictórico que os orientais atribuem às cenas. Todos os filmes soviéticos (os que vieram antes da abertura) têm essa preocupação com a imagem;, explica Sérgio Alpendre, o curador da mostra Tarkovski e seus herdeiros que, a partir de hoje (no Centro Cultural Banco do Brasil), desvendará a codificada obra do artífice soviético.
Simbólico e remissivo à condição pessoal de Tarkovski (que morreu exilado, em Paris), Nostalgia (1983) dá partida à mostra no CCBB, num registro saudoso que acompanha um escritor russo, hospedado em balneário italiano, com o objetivo de pesquisar para a criação de um livro sobre um músico conterrâneo. Vale lembrar a presença do ator Erland Josephson (eterno representante do cinema de Bergman) no filme que sucedeu o encerramento da carreira de Tarkovski, com O sacrifício (1986), prêmio especial do júri e da crítica no Festival de Cannes. Feita na ilha de Gotland (no Mar Báltico), a fita alinha natureza, conteúdo enigmático e uma denúncia da subutilização da capacidade espiritual humana, ao falar da crise de um isolado ator, atormentado pela impotência diante da degeneração da Terra. Com respaldo sueco, a fotografia é de Sven Nykvist (Fanny e Alexander) e a câmera foi comandada por Daniel Bergman, o canto de cisne potencializa a capacidade de ;esculpir o tempo; do cineasta que também foi um teórico de cinema.
;Sobre as qualidades dos outros diretores representados na mostra, e que ressaltam preceitos de Tarkovski, creio que Béla Tarr é o que herda a sensação de desespero dos protagonistas, enquanto Aleksandr Sokurov apresenta a mesma inquietação na procura de uma definição para a alma russa, e Sergei Parajanov é um caso à parte. Não um herdeiro, mas um contemporâneo, um gênio que eu quis colocar na mostra para que seus filmes ficassem mais conhecidos pelo cinéfilo;, explica Sérgio Alpendre, que é redator da Contracampo e foi fundador da revista Paisà. De Tarkovski será possível assistir a tudo, exceto o iniciático A infância de Ivan (1962), vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, e O espelho (1974), as duas obras que repercutem o contato com a Segunda Guerra. Sendo a primeira a mais acessível, ela comunga da carga pessoal de O espelho, com enfoque no afeto recíproco entre a mãe coragem Natália e o filho dela, Ignat.
Na linha autobiográfica, Stalker (1979) traz citados poemas do pai do diretor, Arseni Tarkovski. Dura e pessimista, a obra, vencedora do prêmio especial do júri em Cannes, explora o tempo do silêncio, ao mesmo tempo em que justapõe o racional e o instintivo, para encerrar ações num ambiente alheio às leis da física. Memória e desejo, uma legítima dobradinha cara a Tarkovski, comandam a trajetória clandestina de um cientista e de um escritor unidos para desvendar uma região da Terra que sofre interdição governamental, uma vez que nela é possível o alcance, por parte dos humanos, da materialização dos sonhos.
Combustível humano
[SAIBAMAIS]Sem efeitos exagerados, Stalker se emparelha a Solaris (1972), reforçado por ações internas dos personagens. Balizado por culpa e remissão, tendo como ponto de partida o texto de Stanislav Lem, Solaris é um filme com trama passada no espaço, com amplo caráter metafísico, e que revela a instância erudita de Tarkovski, íntimo da ópera, estudioso de árabe e de temas tão díspares quanto escultura e geologia. No sistema espacial, em ritmo demasiadamente lento, personagens reacomodam o passado, ao mesmo tempo em que dão vazão a inesperados desejos, supervisionados por um psicólogo.
Encerrando a mostra, em 11 de julho, Andrei Rublióv (1966) revela o princípio de um esteta que prezava a liberdade artística, mas foi tolhido pelo alto escalão soviético, com o filme proibido até 1973, sob o pretexto de inconsistência histórica. Ambientado na Rússia Medieval, o filme, em segmentos, traz outro Andrei (Rublióv) arregimentado para a arte: no caso, sob a associação com o pintor Teófanes, o Grego, em pleno século 15, Rublióv deve incrementar a Catedral da Anunciação (no Kremlin). No decisivo capítulo O assalto, depois de se ver obrigado à violência de matar um guerreiro tártaro, o desprendido e meditativo monge do pincel adota o silêncio e a imobilidade artística como meta. Mas o mundo de Andrei Tarkovski é pleno de voltas, assentadas num peculiar manejo do tempo.
TARKOVSKI E SEUS HERDEIROS
Centro Cultural Banco do Brasil (SCES, Tr. 02, conj. 22, 3310-7087). De hoje a 11 de julho. Hoje, com os filmes: A cor da romã (de Sergei Parajanov), às 14h; Páginas ocultas (de Aleksandr Sukorov), às 16h; e, às 19h, Nostalgia (de Andrei Tarkovski). Ingressos a R$ 4 e, para filmes exibidos em DVD, entrada franca. Não recomendado para menores de 14 anos.