Diversão e Arte

O herói da vida comum

postado em 16/07/2010 07:00
Mistura de documentário e ficção, o filme O anti-herói americano (2003) apresenta como protagonista uma figura ranzinza, neurótica, cheia de manias, mas adorável: Harvey Pekar. Arquivista em um hospital na cidade americana de Cleveland, Ohio, Pekar (interpretado com maestria por Paul Giamatti) consegue alguma satisfação em sua vidinha enfadonha colecionando discos de jazz e escrevendo roteiros para história em quadrinhos (sobre nada além de sua rotina muito da comum). Nos Estados Unidos, ele conseguiu alguma notoriedade no fim dos anos 1970 e, principalmente ao longo dos 1980, por conta da repercussão de sua revista, a American splendor, e também por participações no programa de entrevistas de David Letterman ; sua rabugice rendia hilariantes bate-papos com o apresentador. Isso e mais um pouco é contado no longa-metragem dirigido por Shari Springer Berman e Robert Pulcini. E foi graças aos diretores que mais pessoas mundo afora tomaram conhecimento de quem foi Harvey Pekar ; morto na última segunda-feira, vítima de complicações ligadas a um câncer de próstata. A notícia não passou em branco pela imprensa. Mas se Pekar não tivesse ganhado uma popular cinebiografia, será que a sua morte teria chamado tanta atenção? Mais do que um personagem carismático de humor volúvel, Harvey Pekar deveria ser lembrado por sua considerável contribuição para as histórias em quadrinhos. ;Ele é uma figura-chave do quadrinho americano de autor nessas últimas quatro décadas. Sem ele, talvez não tivéssemos obras como Maus (de Art Spiegelman) ou Love and Rockets (de Jaime e Gilbert Hernandez);, comenta Rogério de Campos, editor da Conrad, empresa responsável por publicar o primeiro (e por enquanto, único) álbum com trabalhos de Pekar no Brasil. Bob e Harv: dois anti-heróis americanos é uma coletânea com histórias ilustradas por Robert Crumb, lançada em 2006. ;Quem mostrou que as coisas simples da vida poderiam render boas histórias em quadrinhos foi ele. O Pekar pegou o elemento autobiográfico que o Crumb já tinha nos trabalhos dele e elevou à máxima potência;, explica o editor. ;Todos esses autores que trabalham o caráter biográfico nas HQs, como Joe Sacco, Spain Rodriguez, Alison Bechdel, Chester Brown, Gilbert Hernandez e tantos outros aprenderam alguma coisa com ele.; A sinceridade e a ausência de truques de roteiro para contar boas histórias é o que chama a atenção do cartunista gaúcho Allan Sieber no trabalho de Harvey Pekar. ;É uma influência para mim, sem dúvida;, afirma o desenhista, que conheceu a obra do americano com outro colega de profissão, Fábio Zimbres. O paulistano Laerte teve contato com uma edição da American splendor ainda na década de 1980. ;Eu sempre gostei muito dos roteiros dele. Eles têm uma levada crônica, de relatos sobre o cotidiano escritos de maneira poética. Ele sempre faz um retrato bem sensível da vida americana;, elogia Laerte. ;Os filmes americanos, muitas vezes, mistificam e falsificam o modo como as coisas são. E é legal ver as histórias dele, nas quais não acontecem correria, perseguição, assassinato... Não acontece nada, é só gente vivendo, falando, contando coisas.; Foi sob influência de Harvey Pekar que Laerte fez a HQ Fadas e bruxas. ;Eu me deixei seduzir por contar uma história com desassombros, com esse tom de vida prosaica;. Eis o principal legado de Harvey Pekar: transformar o comum em extraordinário.
O autor, no traço de Crumb: cotidiano transformado em algo extraordinário

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