Diversão e Arte

Filmes do cineasta sueco Ingmar Bergman revelam detalhes e linguagens que o transformaram em um mestre da sétima arte

Ricardo Daehn
postado em 19/07/2010 08:21
Sistematicamente autocrítico, o diretor sueco Ingmar Bergman não ousou, pelo menos até 1968, rever Um barco para a Índia (1947). "Não tinha nenhuma independência, era envergonhado e, no plano técnico, um principiante", disse, em torno de Porto (1948), bastante inteirado do incipiente estilo pessoal. Da mesma época, brotou Música na noite (1947), "um pequeno filme sem pretensões", inesperado sucesso que rendeu o contrato com a Svensk Filmindustri, empresa que tanto estimulou a carreira do diretor morto há três anos. Agrupados no nono volume de box de DVDs dedicados à obra completa de Bergman (com selo da Versátil), os três inéditos longas dão oportunidade para atestar o caráter evolutivo do gênio, que teve a carreira iniciada em 1945. Cena do clássico filme Música na noite: segundo o cineasta, A tônica das mudanças acenadas para os personagens, por meio da possibilidade de viagens, está embutida nos três longas. Música na noite, com roteiro de Dagmar Edqvist (baseado em romance de própria autoria), despista o potencial de autoria de Bergman sempre responsável pelos roteiros, a partir de 1950. Sem integrantes da costumeira trupe de atores (à exceção de Gunnar Björnstrandt), o filme repete, na equipe, dois componentes fundamentais ao anterior Um barco para a Índia: o ator Birger Malmsten e a fotografia de Göran Strindberg. Arejado, apesar de a premissa melodramática - um pianista cego esbarra no preconceito social, ao se apaixonar pela empregada Ingrid (Mai Zetterling) -, o filme não deixa entrever o futuro talento do cineasta. Ainda assim, joga com boas intervenções visuais nas cenas vagamente lisérgicas do limbo (quando o protagonista toma consciência da cegueira), ao mesmo tempo que surpreende, pela ousadia da discreta nudez de Mai Zetterling. Muito mais equiparado ao acabamento de Ingmar Bergman, Um barco para a Índia parte de peça de Martin Söderhjelm para delimitar um enredo de forte conflito entre pai e filho, respectivamente, o capitão Blom (Holger Löwenadler) e o deformado Johannes (Birger Malmsten). Rica no retrato de tipos angustiados, caros ao cineasta que nunca escondeu as desavenças com o pai, um autoritário pastor luterano, a produção enfoca uma disputa entre a matriarca Alice (Anna Lindahl) e a frágil prostituta Sally (Gertrud Fridh), que faz uso da metalinguagem (o teatro se intromete no andamento da fita), um notável recurso na obra do sueco. Repleto de planos tortos e angulosos, o longa trata de um microambiente em convulsão: num barco quase submerso, sob o comando de um patriarca progressivamente cego, o ódio parece alimentar a estagnada tripulação. Jogando com composições, por momentos, quase expressionistas, o diretor de fotografia Göran Strindberg ainda encontra espaço para luminosas sequências assemelhadas às de Monika e o desejo (1952), num diálogo com o elaborado trabalho do colega de profissão Gunnar Fischer (de Morangos silvestres). Sedução neorrealista Representações de tentativas de suicídio e algum apelo para o tom meloso conectam Um barco para a Índia e Porto (1948), esse fortemente apegado à linguagem teatral, natural dada a origem de Ingmar Bergman. Criada a partir do manuscrito O ouro e os muros, de Olle Länsberg (que também assina o roteiro), a fita se abasteceu, assumidamente, do traçado neorrealista de Roberto Rosselini. Bergman se disse tocado por elementos como "sensibilidade, pobreza e monotonia", atribuídos ao colega, ao mesmo tempo em que a imobilidade cênica, à época, servia bem à sofisticação alcançada por uma complexa aparelhagem técnica no set. A linguagem chula, atores que encaram as câmeras e exagerado moralismo são componentes que destoam do clássico universo do mestre sueco. Sob a regular intervenção da Secretaria do Bem-Estar da Juventude, a solitária Berit (Nine-Christine Jösson, meio crescida para a debilidade da personagem) tenta se desvencilhar dos sufocantes cuidados da mãe (Berta Hall), enquanto estreita a relação com Gösta (Bengt Eklund), um estivador que trabalha em Gotemburgo. Além de certa violência - a moça, por exemplo, bate no rosto até da mãe -, Porto dá certos indícios de obsessões de Ingmar Bergman, com direito a segredos que pairam no ar, complicações em aborto (No limiar da vida, de 1958, seria ambientado numa maternidade) e doses de pessimismo que cercam "longas noites de ódio" e são expressas em diálogos como "desde que tenha dinheiro, você terá mulheres e bebidas" e "(no mundo) não há nada além de egoísmo", saídos de um amigo de Gösta. Coleção Ingmar Bergman - Volume 9 Reunião dos DVDs (do selo Versátil) Um barco para a Índia (1947), Música na noite (1947) e Porto (1948). Preço sugerido: R$ 133,90. Não recomendado para menores de 14 anos.

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