;Neste mundo é mais rico o que mais rapa:/Quem mais limpo se faz, tem mais carepa;/Com sua língua, ao nobre o vil decepa:/O velhaco maior sempre tem capa.; Com engenho barroco e verve desabusada, o poeta Gregório de Matos Guerra espicaçou as principais mazelas do Brasil colonial, algumas delas ainda muito vivas no Brasil pós-moderno: a corrupção, os desmandos administrativos, a opressão, a prepotência, o culto da ignorância e a ostentação cômica de títulos dos novos ricos. Gregório vê um mundo com os valores tortos, virados de cabeça para baixo, em que a baixeza se veste de nobreza: ;Era eu em Portugal/sábio, discreto, entendido,/poeta, melhor que alguns,/douto como meus vizinhos./ Chegando a esta cidade,/ logo não fui nada disto:/ porque o direito entre o torto/ Parece que anda torcido;.
A obra do primeiro poeta da história da literatura brasileira está de volta no volume Poemas escolhidos de Gregório de Matos, com seleção e prefácio de José Miguel Wisnik (Cia. das Letras), em uma coleção de livros de bolso, reproduzindo quase literalmente a edição preparada originalmente para a Editora Cultrix. Em poucas páginas, Wisnik consegue realizar uma introdução e contextualização muito esclarecedoras sobre o vate baiano.
Gregório ficou famoso como poeta satírico, mas também produziu poemas engenhosos nas vertentes lírica, encomiástica, erótico-irônica e religiosa. Armado da tradição camoniana e das agudezas barrocas de Quevedo e Gôngora, Gregório não se limitou a ser um mero artesão ou imitador dos poetas consagrados.
Filho de um rico senhor de engenhos da Bahia, formado em direito em Coimbra, erudito, caiu em desgraça depois de se recusar a cumprir uma missão, designada pelo ;Rei Dom Pedro II;, no sentido de realizar uma devassa dos crimes de Salvador Correia Benavides, no Rio de Janeiro. É a partir dessa época que Gregório teria assumido a condição de vate andarilho, participando de festas populares e afiando a língua em sátiras aos desmandos dos poderosos da colônia. ;Que falta nesta cidade? Verdade./Que mais por sua desonra? Honra./Falta mais que se lhe ponha?/Vergonha./O demo a viver se exponha,/Por mais que a fama a exalta,/Numa cidade onde falta/Verdade, honra, vergonha;.
Gregório chegou a advogar e deixou um vestígio poético de seu método de argumentação. Um juiz de Igaraçu processou outro por não chamá-lo pelo título. Na defesa do réu, Gregório esgrimiu: ;Se tratam a Deus por tu,/e chamam a El-Rei por vós,/como chamaremos nós/ao juiz de Igaraçu?/Tu, e vós, e vós, e tu;.
A obra de Gregório revela que a criação nem sempre avança em linha reta. Em certos aspectos, ele poderia ser considerado o um antecipador de certos procedimentos modernistas pelo uso da linguagem coloquial, o senso de humor, a irreverência, a crítica ao espírito de subserviência colonial e o gosto pela experimentação (mesmo escrevendo dentro da estrutura rígida das formas clássicas): ; Para a tropa do trapo vazo a tripa,/E mais não digo, porque a Musa topa/Em apa, epa, ipa, opa, upa.;
DESCRIÇÃO DA CIDADE DA BAHIA
A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um bem frequente olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para levar à praça e ao terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia,
Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.
Poemas de Gregório de Matos
Contemplando nas cousas do mundo desde o
Seu retiro, lhe atira com o seu ápage,
Como quem a nado escapou da tormenta
Soneto
Neste mundo é mais rico o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:
Com sua língua, ao nobre o vil decepa:
O velhaco maior sempre tem capa.
Mostra o patife da nobreza o mapa:
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
A flor baixa se inculca por tulipa:
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Mais isento se mostra o que mais chupa.
Para a tropa do trapo vazo a tripa,
E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.
À Bahia
Tristes sucessos, casos lastimosos,
Desgraças nunca vistas, nem faladas,
São, ó Bahia! Vésperas choradas
De outros que estão por vir mais estranhosos:
Sentimo-nos confusos, e teimosos,
Pois não damos remédios às já passadas,
Nem prevemos tampouco as esperadas,
Como que estamos delas desejosos.
Levou-vos o dinheiro a má fortuna,
Ficamos sem tostão, real nem branca,
Macutas, correão, novelos, molhos:
Ninguém vê, ninguém fala, nem impugna,
E é que, quem o dinheiro nos arranca,
Nos arrancam as mãos, a língua, os olhos.
Benze-se o poeta de várias ações que observa em sua pátria (trecho)
6
Destes avaros mofinos,
Que põem na mesa pepinos
De toda a iguaria isenta,
Com seu limão e pimenta,
Porque diz que queima e arde:
Deus me guarde.
7
Que pregue um douto sermão
Um alarve, um asneirão,
E que esgrima em demasia
Quem nunca lá na Sofia
Soube por um argumento:
Anjo Bento.
8
Desse santo emascarado,
Que fala do meu pecado,
E se tem por Santo Antônio,
Mas em lutas com o demônio
Se mostra sempre cobarde:
Deus me gaurde.
9
Que atropelando a justiça
Só com virtude postiça,
Se premeie o delinquente,
Castigando o inocente
Por um leve pensamento:
Anjo Bento.
Conselho para quem quiser viver na Bahia estimado,
E procurado por todos
Soneto
Quem cá quiser viver, seja um Gatão;
Infeste a terra toda, e invada os mares;
Seja um Chegay, ou um Gaspar Soares;
E por si terá toda a Relação.
Sobejar-lhe-á na mesa vinho e pão,
E tenha os que lhe dou por exemplares,
Que a vida passará sem ter pesares,
Assim como os não tem Pedro de Unhão.
Quem cá se quer meter a ser sisudo,
Um Gil nunca lhe falta que o persiga;
E é mais aperreado que um cornudo.
Coma, beba, e mais furte, e tenha amiga,
Porque o nome d;El-Rei dá para tudo
A todos que El-Rei trazem na barriga.