Nahima Maciel
postado em 25/07/2010 09:54
Quando o diálogo musical entre compositor e intérprete se faz em vida, o público acaba presenteado com leituras excepcionalmente privilegiadas. O encontro entre a pianista niteroiense Ruth Serrão e o compositor César Guerra-Peixe é um desses acasos que o mundo musical agradece. O compromisso da instrumentista com a música erudita brasileira já resultou na gravação completa da obra para piano do Padre José Maurício. O amigo Guerra-Peixe veio em seguida. Não é a obra integral, mas é boa parte dela que Ruth apresenta no disco O piano de Guerra-Peixe, cujo recital de lançamento na Sala Cássia Eller (Funarte) será um passeio pelas fases mais marcantes do compositor.O disco duplo tem início com uma série de 10 Prelúdios tropicais, sequência de curtas composições introdutórias para a obra de Guerra-Peixe. Nos pequenos prelúdios, o compositor natural de Petrópolis traz para uma arquitetura sonora erudita todos os ritmos brasileiros. ;É um grupo de peças maravilhoso nas quais ele se realizou como o compositor nacionalista. Nos prelúdios você pode ver a gama do folclore brasileiro, tem ritmos de São Paulo, do Rio de Janeiro, lamento, reza de defunto, folia de reis, baianada. Essas peças resumem a vida do Guerra-Peixe nacionalista;, avisa Ruth. Em seguida está a inédita Rapsódica, última peça do compositor, escrita três meses antes de sua morte, em 1993, e dedicada à pianista. Com quase 12 minutos e um ritmo enérgico, porém triste e melancólico, a obra recupera melodias populares dos anos 1940 e 1950. Foi a própria Ruth quem estreou a Rapsódica no fim dos anos 1990, durante o Festival Guiomar Novaes.
As duas Sonatinas e o Larghetto que encerram o primeiro disco revelam duas facetas especiais de Guerra-Peixe. As primeiras são fruto das experiências formais. Sonatas e sonatinas são formas clássicas, contribuições fundamentais para a música erudita amadurecidas por Haydn, Mozart e Beethoven no século 18. Guerra transportou a estrutura para um contexto nacionalista e imprimiu às peças tons brasileiros. É possível notar um lamento lapidado nas notas agudas do piano no segundo movimento da Sonatina n; 2, uma sequência de notas entristecidas muito presente na música popular brasileira.
Já o Larghetto é uma das poucas experiências dodecafônicas do compositor. ;Ele era muito curioso e estava descobrindo uma coisa nova. A técnica de escrever era completamente diferente de tudo que se tinha feito. Ele tentou, dentro do serialismo e do dodecafonismo, fazer uma coisa nacionalista, mas não deu certo porque o dodecafonismo é uma técnica de música contemporânea de vanguarda, bem dissonante e que não tem nada a ver com nacionalismo;, avisa Ruth. Em um minuto e meio, um conjunto de poucas notas, muitos silêncios e uma discreta dissonância dão contornos delicados e misteriosos à experiência e deixam uma sensação de que ali poderia haver algo mais. É quase um suspiro dodecafônico.
O segundo disco apresenta um compositor muito ligado à cultura brasileira. É melodicamente mais leve e alegre. As modinhas pontuam boa parte das 22 faixas. Choro, baião e valsa marcam No estilo popular e urbano enquanto o tom brincalhão da criança que descobre o piano faz de Tocata de Joezinho, inédita e escrita para o neto de Ruth, uma brincadeira sofisticada que passeia por todas as gamas do piano. Ainda no universo infantil, O gato malhado é uma adaptação do texto homônimo de Jorge Amado. À medida que os acordes descem à esquerda do teclado é possível imaginar os passos do gato mal-humorado.
Para encerrar, Ruth selecionou as três Suíte infantil, primeiras peças de Guerra-Peixe para o piano. O violino era o instrumento que o compositor dominava desde a infância e para ele produziu muitas peças. Quando resolvia compor para o piano, pedia ajuda a instrumentistas mais íntimos das teclas. A amizade com Ruth Serrão sempre foi pontuada por essa parceria. ;Era uma pessoa muito cuidadosa com as composições. As cordas, para ele, não tinham problema algum, mas para o piano, ele consultava gente, perguntava. Tínhamos uma relação de trabalho muito frutífera;, lembra a pianista, que conviveu com Guerra especialmente nos anos 1980, após voltar dos Estados Unidos.