Um caminhar penoso abre o livro A menina, a guerra e as almas. Entre as memórias de infância da atriz e documentarista Conceição Senna, o trajeto descalço rumo ao cume do Monte Santo para pagar uma promessa feita pela mãe foi escolhido para principiar o livro sobre sua infância vivida em Canudos, na Bahia. Era a iniciação aos sacrifícios da religião católica para a menina de quatro anos, filha de um funcionário do Departamento Nacional de Obras contra a Seca (Dnocs) que mudou-se para a região, cerca de 40 anos após o fim da Guerra de Canudos (1).
As muitas reminiscências infantis da atriz do Cinema Novo e de filmes como Iracema ; Uma transa amazônica, de Jorge Bodansky, registram uma vida sertaneja dificílima, cercada por paisagens propícias a visagens. E, no entanto, muito sedutora. Ao relato, recoberto de inocência, se entrelaça a intimidade da família e a lida das mulheres do lugar para criarem os filhos em região com poucos recursos. ;Como sou atriz, eu me vestia dessa personagem que era eu mesma quando criança na hora de escrever. Não sei nem se fiz uma ficção, uma autobiografia, uma memória. Não sei classificar;, resume Conceição.
A região guardava histórias narradas pelos velhos da vila, as histórias de horror da Guerra de Canudos, que transformaram as águas de uma lagoa em sangue, segundo relato de Sa Joana, reproduzido no livro. ;Era comum encontrarmos artefatos bélicos. Nós usávamos balas de canhão para segurar a porta. Quando chovia, a enxurrada carregava ossadas humanas inteiras;, relembra a escritora, que teve a infância povoada por aparições fantasmagóricas do pós-guerra. A narrativa termina com a mudança da família para a cidade grande ou para a ;civilização;, como prefere Conceição.
;Depois que Canudos foi inundado, eu voltei à região. Foi uma viagem estranha porque eu sabia que não ia encontrar o lugar. Eles apagaram todos os vestígios do que aconteceu lá;, conta sobre a volta à vila inundada nos anos 1970 para a construção de um açude. A vida adulta, contendo a iniciação nos estudos de artes cênicas, o casamento de toda a vida com o cineasta Orlando Senna e a trajetória cinematográfica são deixados de fora nessa publicação.
Sentada na varanda do Hotel Gran Marquise, onde esteve para lançar o livro durante o 20; Cine Ceará, Conceição dividiu a mesa do café com a amiga, a francesa Sylvie Pierre. ;Nós duas vivemos o hippyeismo intensamente no Rio de Janeiro nos anos 1970;, entrega Conceição. Antes de se mudar para o Brasil, Sylvie conheceu a futura companheira em cena do filme O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha. ;Um plano longo e fixo onde a eloquência de sua presença muda é marcante. Madalena é a própria melancolia e também a força de aguentar o destino de mulher na tragédia nordestina;, escreveu a francesa no prefácio do livro de Conceição. ;Eu sou uma sertaneja. Nunca deixei de ser;, define-se a atriz. Atualmente lutando contra um câncer, Conceição exala a força de sertaneja. E é contagiante.
1 - Arraial de Canudos
Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido como Antônio Conselheiro, vagou pelo sertão nordestino durante anos até se fixar na região de Canudos. Sua peregrinação e sua doutrina inspiraram uma parcela de sertanejos, que se transformaram em seus discípulos no Arraial de Canudos. As ideias sobre a divisão justa da terra que o ;Santo Conselheiro; propagava incomodaram diretamente a igreja e os grandes fazendeiros da região e foram interpretadas como propaganda antirrepublicana. Em 1897, o arraial foi devastado por uma campanha militar conhecida como Guerra de Canudos. Milhares de sertanejos foram covardemente assassinados. A história de Canudos virou filme de Sérgio Rezende em 1997.
Trechos
Promessa
;Naquele andar eu começava a me afastar de mim mesma. Depois senti que havia me perdido, mas não sabia como voltar atrás. Buscava em cada canto do passado a minha outra imagem, uma imagem que não fosse medrosa, ou então que o medo fosse só aquele das almas penadas de Canudos. Dava mergulhos profundos no passado e sentia que era importante me encontrar. Agora lembro a dor da subida da montanha.;
Cinema
;A luz apagou, ficou só um feixe luminoso passando sobre nossas cabeças, olhei para trás, o feixe saía da máquina. E vi o primeiro filme da minha vida. No começo fiquei só maravilhada, abestalhada, devia estar com o queixo batendo no peito. Fui me acostumando e vi que era só ver e ouvir e se entendia a história.;