Um fogo de monturo. Aquele fogo que nunca se apaga, e que por mais que você tente, a chama mantém-se acesa por muito tempo. ;O monturo é um monte de lixo orgânico que resiste bastante. Quando você o queima, por mais que se esforce para apagá-lo, ele permanece ali. E é exatamente assim que eu vejo o cordel. Às vezes, ele não está tão em evidência, ou seja, as chamas não estão altas, mas nunca está em decadência. Aquele fogo, por menor que seja, está sempre ali. Vivo.; A definição do cordelista, escritor e poeta João Bosco Bezerra Bonfim sobre a literatura de cordel é (1) mais do que apropriada. Com origens que remontam aos tempos medievais, o cordel perdura há séculos e foi se modernizando ao longo do tempo, sem perder a essência.
Está presente nas cantorias dos repentistas ; até por sua característica de oralidade ;, no cinema, no teatro e até as universidades têm voltado seus olhos para essa manifestação, que apesar das raízes europeias, é tão brasileira, e sobretudo, nordestina como explica a mestranda em literatura pela Universidade de Brasília (UnB) Bruna Paiva de Lucena, que se prepara para defender uma tdissertação sobre o tema: Espaços em disputa: o cordel e o campo literário brasileiro.
As conquistas dos cordelistas são grandes, mas ainda há muito o que fazer. No começo deste ano, a profissão foi regulamentada, e, atendendo a uma solicitação desses poetas, pela primeira vez, o Ministério da Cultura está realizando o I Prêmio mais cultura de literatura de cordel ; Edição Patativa do Assaré (2), que vai contemplar 200 projetos, com investimento total de R$ 3 milhões. As inscrições vão até o dia 14. ;Nossa literatura vem ganhando espaço, sem dúvida. Acredito até que, hoje, apesar de termos muitos repentistas, especialmente aqui em Brasília, o cordel está mais em ascenção do que o próprio repente;, opina Chico de Assis, presidente da Associação de Cantadores, Repentistas e escritores populares do Distrito Federal e Entorno.
Ele, também um cordelista, acredita que esse gênero da literatura atrai por sua forma mágica de dramaticidade por meio da rima e da métrica, e pela facilidade na leitura. ;Tanto é que livros tradicionais e clássicos da literatura estão ganhando formatos em cordel. Isso está cada vez mais comum. Justamente pelo uso de rimas. Tudo isso facilita a leitura, sobretudo para quem está iniciando na alfabetização;, defende Chico, que acaba de lançar um portal sobre o tema (www.derepenteocordel.com.br).
O cearense João Bosco Bezerra Bonfim, que é autor entre outros livros, do cordel O romance do vaqueiro voador, transformado em filme, é outro que destaca o papel do cordel no processo de alfabetização infantil, já que cada vez mais, ele tem sido utilizado na sala de aula. ;Por muito tempo, o cordel foi marginalizado e, aos poucos, está começando a ser valorizado. Isso faz parte de sua modernização, especialmente agora que está sendo levado para as escolas;, acredita.
Leitura fácil
Já para o pernambucano radicado em Brasília Jô Oliveira, um dos mais conceituados ilustradores de obras em cordel, está cada vez mais raro encontrar esse tipo de literatura em feiras ou livrarias, e que o caminho realmente vai ser as escolas. ;A salvação do cordel está na sala de aula. Não se compra mais tanto cordel, como antigamente. Mas como tem uma leitura agradável e fácil de ser decorada, com rimas, desperta o interesse da garotada. É sem dúvida um incentivador e um facilitador da leitura;, comenta.
Por falar em ilustrações, a xilogravura (arte e técnica de fazer gravuras em relevo sobre madeira), e o cordel sempre foram bastante associados, apesar de alguns defenderem que um e outro não são como unha e carne. Segundo o poeta João Bosco Bezerra Bonfim , não existe a obrigatoriedade de um livro em cordel ter ilustrações em xilogravura e explica porque um ficou tão ligado ao outro. ;Antigamente, era muito caro desenvolver uma capa com fotografia e descobriram uma técnica mais barata que é justamente fazer essa figura em madeira, a xilogravura. E foi ficando bacana, esse preto no branco, o que acabou ocorrendo justamente na época de ouro do cordel. Por isso, eles ficaram tão associados. Mas os poemas podem ser ilustrados de várias maneiras. Hoje temos ilustrações cada vez mais coloridas no livros de cordel, e não mais o preto e branco como era antes. Mudam os meios de produção, então muda a forma de se fazer e ilustrar o cordel. A xilogravura não é obrigatória, mas acabou ficando;, frisa
Porém, o ilustrador Jô Oliveira não consegue visualizar um poema de cordel sem a xilogravura. Ele conta, que muitos cordelistas utilizavam a reprodução de fotografia nas capas dos livros e com o passar do tempo, resolveram se apropriar da madeira para fazer as gravuras, que era uma tecnologia disponível e barata. ;Desde então, essa gravura reproduzida na madeira acabou sendo associada ao cordel e os xilógrafos passaram a ter um papel muito especial nesse contexto. Não há como pensar um sem o outro;, salienta.
Se há divergências nesse aspecto, em um ponto há unanimidade. O fascínio e o encantamento que esse tipo de poesia provoca nos leitores. O poeta e cordelista pernambucano Gérson Santos diz que, mesmo com a mudança da temática dos cordelistas ao longo dos anos, que deixaram de abordar as histórias de Lampião e os ;causos heróicos;, e passaram a privilegiar assuntos educativos e sociais, a sua identidade foi preservada. ;O jeito de escrevê-lo não foi alterado. As rimas, a comicidade, a maneira lúdica com que ele é feito ainda atraem muita gente. Independente do que se está abordando;, lembra.
De acordo com João Bosco Bezerra, o fato de o cordel transitar entre o fantástico e o sobrenatural também faz dele algo excepcional e, justamente por isso, nunca deixará de conquistar gerações. ;Quando decidi escrever meu primeiro livro, que foi justamente O romance do vaqueiro voador, eu não queria tratar essa narrativa em prosa, porque acho que tiraria o impacto que ela merece. Queria algo que pairasse nesse universo entre a reportagem e o fantástico; a notícia absoluta e a possibilidade de ter sido invenção. Esse ar de mistério. O cordel negocia com as emoções, com a identidade, com a história, a fantasia. É isso que o faz tão único;, resume.
1 - Nas cordas
É um tipo de poesia popular, originalmente oral, e depois impressa em folhetos rústicos ou outra qualidade de papel, expostos para venda pendurados em cordas ou cordéis, o que deu origem ao nome. Foram os portugueses que introduziram o cordel no Brasil e foi no Nordeste que ele acabou se tornando mais popular. O cordel mais tradicional é a sextilha, ou seja, estrofe de seis versos de sete sílabas, sendo que o segundo verso rima com a quarto, e este com o sexto.
2 - Incentivo
O prêmio, cujas inscrições foram prorrogadas até 14 de agosto, vai selecionar 200 iniciativas culturais vinculadas à criação e produção, pesquisa, formação e difusão da Literatura de Cordel e linguagens afins, com premiação total de R$ 3 milhões. Os projetos podem ser em formato de evento (festivais, mostras, de shows e espetáculos, feiras, etc.) ou de produto cultural (como jornais, revistas, programas de rádios e sites, entre outros). Informações: ou
Entrevista com Bruna Paiva de Lucena - que vai defender uma tese de mestrado sobre o cordel
Fale um pouco sobre a sua pesquisa:
Defenderei minha dissertação de mestrado no Departamento de teoria literária e literaturas da Unb no dia 20 de agosto, o título é "Espaços em disputa: o cordel e o campo literário brasileiro". Estudo o cordel desde a graduação, que foi finalizada em 2007 e logo entrei no mestrado. No dia de minha defesa, que será à tarde, à noite será lançado um volume da Revista Estudos de Literatura Brasileira, da UnB, com um dossiê, organizado por mim, sobre cordel. Será lançada na livraria cultura do Shopping Iguatemi.
Por que decidiu pesquisar o assunto e qual foi o resultado?
Resolvi estudar cordel por me interessar primeiramente pela poética do poeta Patativa do Assaré e logo depois o interesse cresceu. Foi um caminho que muitos pesquisadores percorrem, do interesse pessoal ao acadêmico.
Qual a origem do cordel? Quando veio para o Brasil?
O folheto como suporte a uma poética é um fenômeno que ocorreu em todo o mundo. Pelo fato dos primeiros folhetos a entrarem em solo brasileiro terem vindo de Portugal, postulou-se que a origem do cordel é lusitana. Mas isso não é de todo verdade. A pesquisadora Márcia Abreu, com seu livro História de Cordéis e Folhetos prova isso. Já temos praticamente 100 anos de prática de cordel em solo brasileiro.
Por que ele se tornou algo tão nordestino e sertanejo?
Acredito que as condições de produção do cordel, uma tipografia, tipógrafos, papel barato, enfim, a produção de cordel foi propiaciada por logo ter se desenvolvido as tipografias no Nordeste. Assim como a poética da cantoria já estar desenvolvida, de modo que quando o cordel em suporte folheto chegou ao Nordeste, a cantoria, por já ter se firmado, só contibuiu para o desenvolvimento e continuidade do cordel.
Como você vê o universo do cordel em Brasília? A capital tem uma tradição devido ao fato de ter tantos nordestinos por aqui?
O cordel se aclimatou em Brasília, como em outros estados, acompanhando a migração nordestina. Hoje, com o incentivo da Secretaria de Educação, o cordel também faz parte da educação fundamental das escolas públicas de Brasília.
Como é o espaço que o cordel ocupa hoje no país? Ele vem se modernizando para não perder espaço? Sua essência é a mesma?
Não acredito em essência. Uma poética se move e se modifica com o caminhar de seus produtores e consumidores. A modernização, a mudança faz parte do cordel como de toda arte. Hoje, o cordel ocupa uma posição diferente, temos editais de incentivo à sua produção artística e também sobre a pesquisa acadêmica. Como um movimento de renovação do cordel, temos A Sociedade dos Cordelistas Malditos do Juazeiro do Norte, por exemplo.
Trechos de cordéis de João Bosco Bonfim
Romance do Vaqueiro Voador
Quem em noite de lua
Da Esplanada dos Ministérios
Se aproxima há de ouvir u;a
Voz que ecoa, entre blocos
E um aboio assim sentido
De onde vem? Mistério!
Se aqui não há bois
Se não pastam nestes gramados
Vacas, touros, marruás;
De onde vem esse aboio,
Que bichos ele conduz,
Que ameaças nos trará?
Que segredo esconde
Essa aparição medonha
Será milagre de Deus,
Será alguma peçonha?
Se quer saber então ouça,
Não faça cerimônia.
Era de janeiro primeiro,
Nos idos anos cinqüenta
Quando voou um vaqueiro
De altura sem tamanho
Espatifou-se no chão
Teve da vida o desengano.
Desse acontecimento
Ninguém jamais teve notícia
Não deu manchete em jornal
Nem registro na polícia
E foi sua sepultura
O aço fino e o cimento.
Agora vamos saber
Quem terá sido esse tal
Que despencou do prédio
Cavalgando que animal?
Voou de que maneira?
Gente de bem ou cria do mal?
Sobrenome ele não tinha
Era Oraci Vaqueiro
Ou fosse Raimundo Nonato,
Quem sabe Tonho ou Joaquim?
Nome é o que menos conta
Para quem morre assim.
Embora muito falante
Nada nunca dizia de si
Se era solteiro, casado,
Ou o lugar em que nasceu
Se pai vivo, mãe saudosa,
Seu nome de batismo quem deu.
E se casado era
Fosse que tinha um filho?
Que esperava lá longe
Voltasse o pai ao abrigo?
Ou saudosa esposa olho
Perdido à espera do marido?
Antes de tudo vaqueiro
Que era sua profissão
Até que da roça veio
Para a lida de peão
Pois domar boi ou martelo
Exige os mesmos calos na mão.
Pois Vaqueiro ficou sendo
Para todos companheiros
Ainda mais que aboiava
Todo dia de tardinha
Um aboio tão doído
Que aos olhos choro vinha.
Mas era um vaqueiro leso
Meio gaiato e doido e meio
Gastava o tempo em lorotar
Em mentir, rir e sonhar
Ser o mais rico cavaleiro
O mais hábil montador.
Mas era pobre operário
Retirante sem valor
Versejador de mão cheia
Analfabeto e ladino
Fazia troça da dor
Na morte tirava fino.
Ei-lo caído de bruços
Para o campo paramentado
Peitoral, perneira, gibão
Chapéu passado o barbicacho
Voou no rabo da rês
Mas só chão havia embaixo.
O Tropeiro
Tá vendo aquela caiada
Casa em cima da Serra
Da Joaninha, cumeeiras dividindo
Uma para cada canto da terra
Ali desde o tempo antigo
Uma maldição impera.
Maldição essa ditada
Pela força da vingança
Mas que principiou de vera
Com propósito de aliança
A unir Bezerras e Feitosas
Pelo amor e a temperança.
Mas nem um nem outra havia
De esperar que a traição
Se intrometesse, larápia
Roubando de um o coração
E condenando à outra
Ao ódio e à expiação.
Lobo-Guará de Hotel
De primeiro, era o cerrado,
só paus e bichos havia.
Então vieram as máquinas
e a gente não mais cabia.
Tomaram todo o espaço,
desfazendo a harmonia.
Fizeram um mundão de casas
e prédios foram erguendo,
e nós, os lobos-guarás,
fomos de nós nos perdendo,
sumiram-se os caminhos
da casa em que nós nascemos,
Está vendo aquele prédio
que mais parece um agá?
Foi ali que ergueu toca,
Bisavô Lobo-Guará.
Mas a toca que lá existe,
ninguém mais pode habitar...
Trechos de cordel de Chico de Assis
Justiça Comunitária
É instrumento que cria
Democracia pra todos
E promove a cidadania
Que ajuda a esclarecer,
Evitar e resolver
Conflitos e violências
Simplificar as questões,
Esclarecer as razões
E evitar incidências
Este projeto procura
Promover en tendimento,
Estabelecer diálogo
E dar esclarecimento
Conversar, auxiliar
Para quem queira aceitar
Uma força de vontade
De pessoas do lugar
Que queiram se colocar
Em prol da comunidade.
O projeto visa ainda
Na sua concepção
Uma justiça que possa
Dar direito ao cidadão
Para intermediar,
Ouvir e orientar
As pessoas dos dois lados
Que façam mediação
E que mostre que na questão
Nem sempre há certos e errados.
Quem sempre medeia são:
Agentes comunitários
Chamados mediadores
Quantos forem necessários
Pessoas do mesmo meio
Que tenham o coração cheio
De vontade de ajudar
Que ao serem nomeados,
Estejam bem preparados
Na hora que precisar
São esses mediadores
Agentes comunitários
Que têm participações
Como intermediários
Sempre buscando um caminho
Mostrando a cada vizinho
Que o diálogo é melhor pra os dois
Com medidas preventivas
Tiram as expectativas
De novos problemas depois.
O p rograma também lida
Com quem foi prejudicado
Que confiou no estranho
Depois se sentiu lesado
E quem age em boa fé
Não quer ar redar o pé
Finda aprontando barraco
Que o justo não se corrompe
Mas sempre a corda se rompe
No ponto que for mais fraco.
Justiça e cidadania
Com o povo e o judiciár io
Em Ceilândia e Taguatinga
Tem Centro Comunitário
Escola que capacita
Orienta e habilita
A sua equipe de agentes
Que ficarão preparados
Pra quando solicitados
Pacificar incidentes.
Existe dentro da Escola
Que dá capacitação
Um calendário anual
Com uma programação
Aos agentes escolhidos
Que depois de definidos
Receberão ótimos planos
De várias aulas verídicas
Sobre matérias jurídicas
E de Direitos Humanos.
É preciso os moradores
De uma comunidade
Conhecerem uns aos outros
Buscar fazer amizade
Falar de diversos temas
De soluções e problemas
De dores e pesadelos
Porque se todos se unirem
Quando os problemas surgirem
É mais fácil resolvê-los
Portanto, comunitário
Converse com os vizinhos
Partilhe com todos eles
Nos encontros dos caminhos
Promova evento, os convide,
E com isso consolide
Um entendimento incrível
Unidos por toda vida,
Pois comunidade unida
Se torna quase imbatível.
Trecho de cordel de Gérson Santos
SOS Natureza
Pretendo neste cordel
alertar a nossa gente
sobre um tema importante
o nosso meio ambiente
pois aqui nós desfrutamos
o que Deus deu de presente
Deus criou a natureza
e nós temos que preservar
se tem alguém destruindo
temos que denunciar
não devemos se omitir
pra mais tarde não chorar
A vida só é saudável
quando tem educação
e também a consciência
de praticar boa ação
conservando a natureza
com muita obrigação
Nosso planeta Terra
onde todos nós vivemos
merece ter mais respeito
porque nele é pra crescermos
se a gente destruir
dele nada merecemos
Água que é fonte da vida
a escassez tá chegando
a ignorância de alguns
deixa ela estragando
com o uso indevido
e no ralo vai passando
É preciso ficar sabendo
toda a população
que daqui a alguns anos
água pura não terá não
pois quem estraga e polui
é o culpado disso então
Os nossos mananciais
cada vez mais poluídos
são dejetos de lixo
o governo tem pedido
de não poluir o solo
pois deixa comprometido
Há desastres ecológicos
de partir o coração
milhares de peixes mortos
por causa da poluição
ao invés da gente pescar
se pega peixe de mão
São os navios e usinas
que causam mortalidade
despejam no rio e no mar
sem nenhuma piedade
venenos e petróleos
jogam tudo à vontade