Diversão e Arte

Das escravas aos gourmets

Historiadora conta, em dissertação de mestrado na USP, como se formou a riqueza gastronômica brasileira. Estudo mostra de que forma as enormes mudanças sociais influenciaram a culinária do país

postado em 14/08/2010 07:00
HomemFoi das mãos de grandes cozinheiras sem qualquer estudo que a gastronomia brasileira se formou. Nada de chefes da alta nobreza ou de professores europeus: a riqueza culinária do país deve-se ao trabalho das escravas que produziam a farinha de mandioca no pilão; ao capricho das patroas aristocratas que tentavam copiar os costumes franceses; aos dotes das donas de casa que aprenderam a fazer pudins escritos em anúncios de revistas. E, ainda hoje, a culinária é escrita pelas mulheres que assumem as panelas por puro prazer e divide o fogão com os homens.

Para descobrir como a cozinha do Brasil evoluiu, a historiadora Débora Santos de Souza Oliveira trabalhou durante três anos em uma pesquisa detalhada. Buscou livros e relatos, comparou receitas de diferentes séculos, analisou propagandas e procurou por respostas. ;Sempre gostei de cozinhar e até cheguei a fazer faculdade de nutrição, mas, naquela época, trabalhar na cozinha era malvisto. De repente, ficou benquisto, e o chef virou um formador de opinião. Queria entender o que mudou, como mudou e para onde vamos;, conta. O resultado foi publicado na dissertação de mestrado A transmissão do conhecimento culinário no Brasil urbano do século 20 da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).
[SAIBAMAIS]
Quando os portugueses desembarcaram no Brasil, precisaram se adaptar aos ingredientes tropicais e arrumaram novas cozinheiras: as índias. Mais tarde, a responsabilidade passou para as escravas. A cozinha ficava em um local separado da casa grande e o trabalho era extremamente braçal. ;Era um lugar desprestigiado e até sujo, onde se matavam animais e se defumava carne;, relata a historiadora. O cardápio era simples: feijão, farinha e carne seca. Vez ou outra ; cúmulo do requinte ;, eram servidos legumes refogados. A comida do dia a dia era muito simples e bem rural. As refeições mais elaboradas eram exclusivas de festas e casamentos ; e para receber convidados importantes.

Empregada domésticaPara a dona da casa, a sinhá, sobrava o glamoroso trabalho de fazer doces. Doces em caldas, compotas, geleias e frutas cristalizadas, tudo o que fosse fácil de armazenar e tivesse uma durabilidade maior. ;Na época colonial, as damas costumavam fazer doces delicados, bombons cheios de açúcar, que precisavam de paciência e cuidado, nada de força;, comenta Débora. As sobremesas eram protagonistas de muitas crendices e encantamentos. Quando alguém ficava doente, a senhora da fazenda levava um doce de cortesia, para ;melhorar; a saúde.

Vida urbana
Os costumes culinários começaram a mudar com a chegada do ciclo do café, no século 19. ;Foi o início da urbanização, o acesso à energia elétrica, carros começando a circular. A cozinha passou a fazer parte da casa. A mão de obra escrava foi substituída pela empregada doméstica;, explica a historiadora. O primeiro fogão a gás do Brasil foi instalado, em 1910, no palácio do governo de São Paulo. Surgiram as primeiras latas em conserva, os armazéns conhecidos como ;secos e molhados; e os açougues.

A forma de cozinhar também mudou, com a influência da culinária e do jeito de servir francês aumentando. O papel da dona de casa passou a ser orientar a empregada e montar o cardápio. ;Ela estava mais interessada em aprender piano do que uma nova receita. Também é importante para a classe média, com mais intensidade nos anos 1940, saber receber. Ela precisava organizar o jantar para receber os amigos do marido. Era chique ser francês e servir consomê e galantines;, explica Débora.

EscravasA partir dos anos 1950, as donas de casa tiveram que colocar a mão na massa. A cozinha ganhava ares de modernidade, cheia de eletrodomésticos. O liquidificador era um item de puro luxo e tinha se tornado ;o melhor amigo; das senhoras casadas. As mulheres assumem o papel de cozinheira e ganham o apoio da indústria alimentar. As receitas chegam nos rótulos do amido de milho, do açúcar, da farinha e do leite condensado. Cada empresa tinha uma caixa postal para receber cartas das consumidoras e enviar catálogos e livros cheios de delícias ideais para preparar para a família.

Muitos pratos hoje considerados populares eram novidade na época. O estrogonofe, por exemplo, foi criação de uma empresa produtora de creme de leite. Os pavês e as tortas salgadas eram bem elaboradas, mas não demoravam horas para ficarem prontas. ;A comida começa a ser vista como um diferencial. Aquela mulher não cresceu vendo a mãe cozinhar, por isso ela busca receitas e recursos. Tudo o que promete facilitar a vida, ela consome;, revela a historiadora.

Donas de casaNo fim do século 20, a cozinha é quase um lugar de aconchego, onde estão as lembranças da infância, da mãe com o bolo no forno e do aprendizado das primeiras receitas. ;A mulher cresceu naquela atmosfera, mas também enfrenta o dilema da vida moderna. Quer cozinhar, mas também quer ser doutora;, afirma Débora. A gastronomia passa então a ser vista como hobby. Aventurar-se com novas receitas passa a ser programa para o fim de semana.

Importações
A entrada de ingredientes importados no mercado brasileiro, nos anos 1990, fortalece o apelo gourmet da comida. O arroz arbóreo, o funghi seco, o açafrão e o pinoli, por exemplo, começam a fazer parte do cardápio de jantares para os amigos e as massas e os risotos tomam o lugar de prato principal. ;A cozinha é sinônimo de prazer, não é mais obrigação. Surge a figura do chef, que tem um domínio técnico. Começam a aparecer utensílios e panelas diferentes. O espaço físico começa a ser valorizado, arquitetos são chamados para criar um ambiente ideal, onde antes existia apenas forno, fogão e geladeira;, diz Débora.

O homem também começa a comandar as panelas. E o cardápio foge do trivial: quanto mais refinada a receita, melhor. ;Assim como o tipo de música que você ouve pode dizer quem você é, o quanto você sabe de gastronomia também. Os pratos que você prepara transmitem parte da sua personalidade. É um novo indicador social. Aqueles que gostam de cozinhar são pessoas antenadas, viajadas. A pessoa que entende de vinho é considerada bacana;, analisa a historiadora. Os livros de gastronomia também ganham espaço no mercado e ocupam lugar de destaque nas livrarias.

Em direção ao futuro, a culinária brasileira caminha para o ramo da especialidade. ;A fórmula vai ser simples. Eu como e me diferencio. Algumas pessoas só vão querer consumir uma massa com gran duro e outras um produto que não agrida a natureza e seja livre de hormônios. Serão formados pequenos nichos, como: saudável, gourmet, tradição e da conveniência;, aponta Débora. Para a historiadora, o momento atual deve se perpetuar e cada vez mais a gastronomia vai fazer parte da cultura do Brasil. ;Pelo menos nos próximos 10 anos, vai se acentuar essa questão da sociabilidade e da escolha. Afinal, comer é um ato social;, conclui.

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