Carlos Marcelo/Estado de Minas
postado em 14/08/2010 07:00
A culpa é de Glauber. Depois que assistiu a Deus e o diabo na terra do sol, Luiz Bernardo Pericás guardou na memória as imagens emblemáticas da saga de Antonio das Mortes. "Saí do cinema quase em transe, com a sensação de que havia assistido a um filme genial, uma obra-prima. Aquelas imagens ficaram em minha mente por muito tempo", conta ao Correio. Ali nascia o interesse do historiador pelo cangaço. O que ele conhecia, porém, eram as versões romantizadas nos livros, cordéis e nos cinemas. Pericás, então, resolveu aprofundar os estudos para tentar iluminar aspectos do fenômeno social que marcou a primeira metade do século 20. "Minha intenção não foi ser polêmico, mas apenas lançar luz a novas variáveis e enfatizar alguns aspectos do cangaço que por vezes foram negligenciados ou, pelo menos, pouco explorados por outros autores", conta. Após viagens para o agreste e sertão nordestinos, consulta de publicações e pesquisas em universidades no Brasil e no exterior, ele chegou ao resultado final: o livro Os cangaceiros ; ensaio de interpretação histórica, lançamento da Boitempo Editorial. Em entrevista ao Correio, ele discorre sobre o trabalho, aponta distorções históricas, explica a razão de sua crítica ao "banditismo social" defendido por Eric Hobsbawm e indica livros sobre o assunto.Como surgiu seu interesse sobre o tema?
Desde garoto o cangaço é um tema que me interessa bastante. Mas, como a maioria dos brasileiros, o que eu conhecia sobre o assunto eram versões romantizadas da vida daqueles bandoleiros em livros e cordéis, e suas histórias (muitas vezes, mais próximas da ficção do que da realidade) contadas por nossos cineastas. O fato é que o cangaço está incrustado no imaginário social de nosso país. É difícil encontrar alguém que não conheça a "saga" de Lampião e Maria Bonita, por exemplo. No Nordeste, a imagem do ator social cangaceiro é muito forte e continua gerando interesse a cada nova geração. Em torno de seis anos atrás, resolvi ler mais atentamente o que havia sido escrito sobre o tema e percebi que havia grandes possibilidades de avançar nos estudos sobre o cangaceirismo, mesmo que iluminando ou dando maior ênfase a um ou outro aspecto deste fenômeno social. Achei que valia a pena tentar dar uma nova contribuição nesta área.
Nesse processo, qual a maior dificuldade?
A maior dificuldade ao longo do trabalho talvez tenha sido saber como fazer um estudo equilibrado. Este é um tema que provoca paixões, muitas discussões acirradas, até hoje. Não tive intenção de fazer uma biografia ou uma história apenas factual, mas, na prática, um estudo mais abrangente. Ou seja, um ensaio que fosse essencialmente de "interpretação" histórica, que pudesse trazer alguns questionamentos e análises interessantes sobre esse assunto.
Como as intepretações históricas do cangaço foram se modificando ao longo do tempo?
A bibliografia relativa ao cangaço é enorme. Desde escritores (como José Lins do Rego e Maximiano Campos, por exemplo) até jornalistas, historiadores, sociólogos e antropólogos, muitos escreveram sobre o tema. E as interpretações do cangaceirismo, como se pode supor, foram também muitas e variadas. Há dezenas de livros sobre o assunto, escritos por autores representativos, como Gustavo Barroso, Xavier de Oliveira, Ranulfo Prata, Érico de Almeida, Optato Gueiros, Rodrigues de Carvalho, Abelardo Montenegro e Maria Isaura Pereira de Queiroz, só para citar alguns. Parte destas obras, contudo, é de qualidade duvidosa, algumas delas com escasso caráter científico. As teorias lombrosianas e os preconceitos étnico-culturais estão presentes em muitos destes trabalhos.
Como surgem as distorções históricas?
É possível encontrar livros tendenciosos, alguns dos quais escritos na época em que o cangaço estava no auge, carregando nas tintas os atos dos bandoleiros e usando muitas vezes os argumentos dos governos locais para apoiar uma dura repressão àqueles bandos. Homens que lutaram nas Forças Volantes contra os bandoleiros ou escritores que apoiavam alguns políticos ou governos locais escreveram sua versão dos fatos, pelo lado da legalidade. Neste caso, Lampião e seus asseclas seriam indivíduos monstruosos, abomináveis. As descrições físicas que faziam de cada um daqueles brigands eram quase caricaturas. Já outros, como Eduardo Barbosa ou Frederico Bezerra Maciel (que produziu uma biografia de Virgulino Ferreira em seis volumes), tentaram mostrar o "rei" dos cangaceiros como um "herói" popular, quase um Robin Hood sertanejo, também distorcendo a realidade. Do final dos anos 1950 ao final dos anos 1960, autores como Rui Facó e Christina Matta Machado, apresentaram o cangaço como uma revolta social inconsciente das massas sertanejas empobrecidas e exploradas. Seria uma forma de rebeldia contra as injustiças do sertão. Mais tarde, Antônio Amaury Correia de Araújo publicou diversos livros sobre o cangaço, em geral, baseando-se em depoimentos orais de ex-bandoleiros que entrevistou. Ou seja, ainda que textos bastante lineares, narrativos, eles são úteis aos pesquisadores, já que contam a história a partir da visão de alguns dos próprios ex-cangaceiros. Em outras palavras, as histórias "reais" podem até ter sido, quiçá, modificadas ou romantizadas pelos entrevistados, mas ainda assim são documentos testemunhais de grande importância.
Por que considera questionável a teoria do banditismo social defendida por Eric Hobsbawm?
Para Hobsbawm, os bandidos sociais permaneceriam dentro da sociedade camponesa e em tese, seriam admirados e respeitados pela população mais humilde, que poderia chegar a considerá-los "heróis", "vingadores", "justiceiros" ou até mesmo "líderes de sua libertação". Esses bandidos, portanto, lutariam contra os "inimigos de classe" do campesinato: o Estado e os potentados rurais. Representariam, neste caso, um protesto social de caráter pré-político e inconsciente. Para o autor de Era dos extremos, o banditismo social não apresentaria organização ou ideologia, seria inadaptável aos modernos movimentos sociais, teria uma visão retrógrada e tinha por objetivo reconstituir uma ordem social tradicional. Essas são, em linhas muito gerais, algumas das facetas do banditismo social. Hobsbawm, sem dúvida nenhuma, é um intelectual por quem tenho o maior respeito, que produziu uma obra séria, ao longo de várias décadas. Mas creio que, especificamente em Bandidos (onde discute o cangaço), ele se propôs a elaborar uma teoria demasiadamente geral sobre o "banditismo social" (já esboçada em Rebeldes primitivos, muitos anos antes), comparando uma grande quantidade de casos de banditismo em todo o globo, usando como base, em grande medida, lendas e folclore popular, com escasso uso de documentos e uma bibliografia bastante limitada. Num livro relativamente curto, o autor britânico menciona casos de bandidos ingleses, espanhóis, italianos, mexicanos, norte-americanos, indianos, chineses, brasileiros, turcos, peruanos, bolivianos, colombianos, húngaros, gregos, bósnios, indonésios, franceses, alemães, russos e cubanos, entre outros. Em edições posteriores também incluiu o caso de Ned Kelly, na Austrália. Quando escreveu, Hobsbawm conhecia cada um desses países a fundo e cada grupo de bandidos sobre os quais discorreu? Ele leu os livros e artigos sobre estes bandoleiros de diferentes partes do planeta em obras escritas em suas línguas originais? Ele esteve pessoalmente naqueles países? Ele entrevistou os personagens relacionados com o tema em cada uma das nações apresentadas? É bom notar que em seu Bandidos, por exemplo (falo aqui da primeira edição), ele chega a dizer que em 1926, a Coluna Prestes era "uma formação guerrilheira volante liderada por um oficial rebelde do Exército, que na época se transformava em chefe do Partido Comunista Brasileiro". Uma informação, como se sabe, equivocada e anacrônica.
Por isso, você acredita que o conceito do banditismo social é insuficiente para explicar o cangaço?
A teoria do "banditismo social" parece não corresponder, pelo menos em sua totalidade, ao cangaço. Poderíamos discorrer aqui sobre cada uma das variáveis apresentadas por Hobsbawm para caracterizar o "banditismo social" e mostrar que, de maneira geral, elas não correspondem ao cangaceirismo. Em outras palavras, alguns elementos da teoria podem estar presentes em um ou outro bandoleiro, e pode até haver alguns casos de exceção que estejam em conformidade com suas idéias, mas de maneira geral, não se pode dizer que aqueles criminosos se enquadrassem nos pressupostos apresentados por ele. Muitos líderes do cangaço tinham origem social relativamente abastada (eram "coronéis" ou parentes destes) e membros de famílias tradicionais sertanejas. Na prática, eles eram parte da "elite" local. Alguns eram latifundiários, descendentes de oficiais da Guarda Nacional e donos de escravos (ou filhos destes). E muitos daqueles bandoleiros conseguiram ganhar bastante dinheiro com extorsões, seqüestros e roubos (dinheiro roubado tanto de ricos como de gente mais pobre, indistintamente) e que não era utilizado para melhorar a vida das populações mais humildes. Pelo contrário. Seu interesse era ficar com o butim para si. José Baiano, que costumava marcar mulheres com ferro em brasa com suas iniciais "JB" (o mesmo que se usava para marcar gado), é um desses casos. E Corisco, homem extremamente cruel, é outro que conseguiu guardar bastante dinheiro ao longo de sua carreira de crimes.
E como se dava a relação dos cangaceiros com os donos do poder?
Esses bandoleiros tinham, em várias instâncias, bom relacionamento com os "coronéis", policiais e políticos mais reacionários da região (de quem recebiam proteção, armas e munição); agiam e eram vistos por muitos cangaceiros de menor expressão (a "arraia miúda" do cangaço) como "patrões"; e na maior parte dos casos, não tinham nenhuma identidade de classe com o povo mais pobre do sertão. Preferiam estar na companhia dos "coronéis" do que de agricultores humildes ou de trabalhadores rurais, os quais, em muitos casos, foram torturados e assassinados por aqueles criminosos, sem nenhuma piedade ou remorso. Não podemos generalizar, é claro, é há muitos casos que poderiam ser vistos com mais atenção. Mas de maneira geral, as principais lideranças do cangaço não eram bandidos sociais. Vale lembrar que Lampião se aliou a Floro Bartolomeu e ao Padre Cícero, para lutar num Batalhão Patriótico (ou seja, uma aliança com o que havia de mais conservador e reacionário, o coronelismo e a Igreja), a favor do governo, da "legalidade", justamente contra a Coluna Prestes, liderada pelo "Cavaleiro da esperança", este sim, um indivíduo que representava a rebeldia social e a tentativa de mudança da situação política do país. Lampião percebeu que continuaria sendo visto como bandido pelas polícias dos estados nordestinos e decidiu permanecer em sua vida de crimes. Mas sua decisão de querer se aproximar e lutar ao lado do establishment, ao lado dos poderosos, é clara e, creio, bastante significativa.
Que outras ideias perderam força ao longo do tempo?
A ideia de que os cangaceiros representavam uma forma de rebelião pré-política e inconsciente também me parece equivocada. Primeiro, eles não estavam se rebelando contra os potentados rurais, mas em realidade, se pudessem, gostariam de se tornar um eles (e alguns, de fato, tinham a mesma origem de classe dos senhores rurais). Segundo, considerar suas ações como pré-políticas e inconscientes é ter uma visão apriorística destes indivíduos e do mundo em que viviam, além de decidir, unilateralmente e de antemão, como as pessoas devem agir e que caminho devem tomar. Em outras palavras, só porque eles não representavam um movimento social orgânico ou não se uniram ou formaram um partido político, não significa que eles simbolizavam "movimentos pré-políticos" e "inconscientes". Olhando a partir desta perspectiva é como considerar estes homens quase adultos infantilizados, sem coerência ou conhecimento do mundo a sua volta, incapazes de se organizar numa força política capaz de enfrentar o sistema. Na verdade, eles sabiam exatamente quais eram as forças políticas e o ambiente social de sua região, eram muito hábeis em negociações políticas com os "coronéis", com os políticos e a polícia, e escolheram seu lado. Na realidade, se os cangaceiros tivessem de se aliar a alguém, seria com os ricos e poderosos da região (até mesmo se fosse para lutar contra outros ricos e poderosos) e não com as massas de despossuídos, com os mais pobres.
Como a figura de Lampião ganhou ares míticos ao longo das décadas?
Lampião, sem dúvida, foi o mais importante de todos os cangaceiros. Nem mesmo Antônio Silvino chegou perto em importância histórica. Virgulino Ferreira tinha qualidades muito superiores a outras lideranças de sua época: inteligente, com grande resistência física, demonstrava arrojo e ousadia em combate. Sabia estruturar e comandar com muita habilidade seu bando, conseguindo sobreviver por muitos anos em situações por vezes adversas, reconstituir seu grupo (quando, em momentos, tinha a seu lado poucos companheiros de armas), novamente robustecer suas hostes e continuar dentro das atividades criminosas com muito êxito. Seu bando atuou numa área muita ampla do sertão e agreste nordestinos: seu nome e fama, portanto, cruzaram fronteiras. Os brigands que comandavam subgrupos, também levavam para outras partes da região o nome e a fama de Virgulino. Lampião também nunca se entregou. Sinhô Pereira abandonou o cangaço; Antônio Silvino foi capturado e preso; mas Lampião permaneceu até o fim como um guerreiro. Nunca se rendeu. Terminou a vida como líder cangaceiro. A competência que Lampião tinha para escolher seus aliados e aqueles que lutariam a seu lado também deve ser lembrada. Em outras palavras, temos aqui um caso concreto de que um indivíduo fez, de fato, a diferença. Ele foi, portanto, sem dúvida nenhuma, o grande protagonista do cangaço.
E como Lampião foi retratado pela mídia?
É bom lembrar que nos anos 1920 e principalmente na década de 1930, a mídia já estava bastante desenvolvida. Fotografias de Lampião posando na caatinga com seus companheiros apareciam em revistas e jornais brasileiros, nas principais capitais (inclusive no Rio de Janeiro) e imagens filmadas de seu bando foram registradas de forma muito favorável por Benjamin Abraão. O nome e a imagem de Lampião foram usados por lojas de chapéus e pílulas para prisão de ventre em seus anúncios, só para citar dois exemplos. Até mesmo a imprensa nos Estados Unidos chegou a falar dele. Toda a "estética" e a "imagem" do ator social cangaceiro são do período lampiônico. E finalmente a entrada das mulheres nos bandos, na década de 1930, também ajudou na mitificação do fenômeno. Os grupos eram nômades, tinham indumentária própria e muito característica, andavam juntos, levavam consigo mulheres, crianças e animais de estimação, dançavam, bebiam e criavam grande medo e confusão ao entrar nos povoados. Esses todos são elementos que, combinados, deram a Lampião uma grande importância e fama não só em sua região, mas em todo o país. Cumprem papel importante na divulgação e mitificação do cangaço (e todo o exotismo em torno dele) a história oral, os cordéis e também, é importante ressaltar, o cinema nacional. Os cangaceiros foram retratados por muitos cineastas importantes. Aqueles bandoleiros, assim, saem do mundo real e se transformam em personagens de ficção. A imagem do cangaceiro é manipulada e serve a todos os gostos. Ele pode ser o bandido, o justiceiro, o vingador, o herói. Serve para todos os públicos. Conversei com um cordelista certa vez e perguntei sobre a veracidade de algumas de suas narrativas. Ele me disse que em alguns casos foi fiel à realidade, mas em outros, simplesmente inventou. E assim, as histórias vão se transfigurando, se transformando, ganhando novos significados. Lampião e Antônio Silvino, portanto, acabam entrando em confronto com homens, com policiais, com "coronéis", mas também com seres míticos, com o diabo, dragões de várias cabeças, personagens do folclore nacional e etc. Eles deixam de ser verdadeiras figuras históricas e se tornam também parte das lendas e do folclore sertanejo.
Serviço
Os cangaceiros ; Ensaio de interpretação histórica
De Luiz Bernardo Pericás. Boitempo editorial, 320 páginas. R$ 54,00.
Bibliografia comentada
Pericás comenta obras de referência sobre o cangaço:
* Guerreiros do sol ;
Frederico Pernambucano de Mello
"Um clássico sobre o cangaceirismo"
* Entre a cruz e a espada: violência e misticismo no Brasil rural ; Gregg Narber
"Um livro de síntese sobre o messianismo, milenarismo e cangaço, uma obra mais convencional, porém, competente"
* O povo em armas ; Jorge Mattar Villela
"Tese de doutorado do antropólogo e professor da UFSCar, publicada em 2004, muito útil para pesquisadores"
* Bandoleiros das catingas
; Melchíades Rocha
"Trabalho de campo pioneiro, uma grande reportagem, logo após o assassinato de Lampião, que foi publicada em forma de livro"
* Os homens que mataram o facínora- Moacir Assunção
"Reportagem histórica que também vale a pena ser mencionada"