Poucas coisas estão mais disponíveis ao olhar do homem que a paisagem. Urbana ou não, nela o olho esbarra invariavelmente, milhares de vezes ao dia. Nem sempre, porém, a paisagem assume contornos contemplativos. É mais frequente passar despercebida. Nesse espaço entre ver e olhar, situa-se a pesquisa da artista plástica Karina Dias. Desde 1997, ela investiga como se dá a construção do olhar diante da paisagem e, especialmente, em que momento o homem enxerga o cenário pelo qual passa diariamente de maneira a encontrar ali alguma poesia. Em Entre visão e invisão: paisagem (Por uma experiência da paisagem no cotidiano), livro editado com apoio do Fundo de Apoio à Cultura (FAC) e da Universidade de Brasília (UnB), Karina propõe visitar os limites entre a poesia e o banal quando os olhares se dirigem para os cenários terrestres.
O livro, cujo lançamento acontece hoje no Museu Nacional Honestino Guimarães, nasceu como tese de doutorado. Além do texto, vem acompanhado de extratos de videoinstalações e registros de intervenções urbanas realizadas em Paris e Brasília. ;Queria entender em que momento os caminhos de todos os dias, cujas finalidades são mais práticas que contemplativas, transformam-se em paisagens, como se o olho as estivesse vendo pela primeira vez;, explica a artista. Para se orientar e conduzir o leitor, ela formula três perguntas às quais se dispõe a responder.
Primeiro, Karina lança a dúvida sobre o que é capaz de ver para em seguida destrinchar como o faz e o que vê quando não está olhando. ;Fui buscar respostas na história da arte, na geografia, na filosofia e na poesia. Na definição clássica, paisagem é aquela porção do que pode ser abarcado pelo olhar. É um recorte. No livro, desenvolvo uma noção minha de paisagem: ela é ponto de vista e contato, porque é uma relação com a intimidade. É o momento em que a gente consegue ver a poesia na forma da cidade.; Karina se interessa também pelas imagens armazenadas na memória após serem contempladas e aquelas que se encaixam fora do enquadramento delineado pelo olhar.
Essas paisagens são lembranças ou imagens veladas, não muito definidas, guardadas na categoria ;visto;. ;Ter visto é o armazenamento, é a memória, é a organização interna do que estamos vendo, é o que chamo de ;invisão;, um mosaico de imagens que formam paisagens íntimas de cada observador.;
As imagens que acompanham o texto foram extraídas dos 20 vídeos realizados pela artista em Paris como parte do processo de pesquisa. ;O livro é uma reflexão teórico-prática e parte dos meus trabalhos de videoinstalação;, avisa a artista. As obras foram apresentadas em galerias na França, Alemanha e China, mas não chegaram a ser mostradas no Brasil. A publicação traz ainda os registros de intervenções urbanas realizadas com espelhos na Esplanada do Ministérios, um truque para se multiplicar a paisagem e provocar novos pontos de vista.
Trechos de Entre visão e invisão: paisagem
"Proponho pensar o espaço da rotina, que acreditamos conhecer tão bem, a partir de um movimento do olhar que se configura como um atravessamento do mundo, nos revelando novas percepções espaciais. Nessas ocasiões, a paisagem se encontraria, a todo o momento, no limiar da visão, entre a possibilidade de ser ou não percebida, de passar do estado de não-visão para a visão. Ela estaria lá, sempre na iminência de aparecer, à espera de que o observador ultrapasse os limites que a camuflam.
Constataremos que a paisagem é mais do que um simples ponto de vista ótico. Ela é ponto de vista e ponto de contato, pois nos aproxima distintamente do espaço, porque cria um elo singular, nos entrelaçando aos lugares que nos interpelam. Certamente, a paisagem deriva de um enquadramento do olhar, alia o lado objetivo e concreto do mundo à subjetividade do observador que a contempla. A paisagem é uma experiência sensível do espaço.
Para compreender a experiência da paisagem no cotidiano, vale lembrar que estamos imersos em um espaço onde tudo ressoa e chama a ser visto, onde o excesso do que há para ser visto, ouvido e percebido entorpece os nossos sentidos. Somados a isso, estão a rapidez e a urgência de nossos deslocamentos, sempre tributários de inúmeras finalidades práticas. Diante disso, o olhar contemporâneo aponta para algumas questões: como manter, na adversidade, o olhar atento, desperto, para perceber a paisagem? O que ainda poderia nos interpelar para olharmos o que nos circunda como paisagem? Que detalhe(s) seria(m) capaz(es) de armazenar o horizonte, de condensar o mundo, de sustentar a sua arquitetura?"