Alejandro Reyes levava uma vida com nível um pouco acima da realidade da maioria dos imigrantes mexicanos nos Estados Unidos. Tinha um emprego na área de informática e uma renda razoável. Mas algo não ia bem. Não era falta de dinheiro, o que ele precisava era de inspiração. Foi quando o inquieto escritor largou a aridez norte-americana e atravessou o Atlântico, onde ficou na Europa, ;vivendo de trabalhos aqui e ali;. No entanto, não eram aquelas mesas de café nas ruas das cidades europeias que o inspirariam. Foi no clima tropical brasileiro que Alejandro se encontrou. ;Nesse momento, tinha um romance fermentando na cabeça e quis procurar um lugar tranquilo para escrever. Escolhi a Bahia porque já tinha lido muito a respeito e tinha muito contato com o Brasil;, conta em entrevista ao Correio.
Era 1994. O plano inicial do escritor era permanecer pouco tempo, apenas o suficiente para terminar o livro. ;Descobri na Bahia uma ressonância em mim... e terminei ficando uma década;. Por isso, quem lê a história de amizade, companheirismo, descobertas, dramas, perdas, violência e drogas presentes em A rainha do cine Roma, romance de estreia de Alejandro Reyes lançado pela editora LeYa, se impressiona com o preciosismo de cada cena descrita. ;Durante a escrita, passei muitas horas andando pelas ruas, conversando com crianças, prostitutas e travestis;, lembra. ;Por um lado, porque precisava entender melhor o submundo da noite, das drogas, da prostituição e do transexualismo. Por outro, porque escrevê-lo em primeira pessoa, na voz de um menino morador de rua, implicava num grande desafio linguístico.;
Submundo
A história de Betinho e Maria Aparecida é carregada de melancolia, mas também de uma alegria e esperança comuns às crianças. Com problemas familiares e sendo vítimas de estupro na própria casa, os dois vão parar na rua. Foi nesse ambiente escuso que eles se conheceram e onde se tornaram grandes amigos. O Cine Roma do título é um cinema abandonado onde os meninos vivem boa parte da trama. Nesse turbilhão, enfrentam traficantes, policiais, bandidos, moradores de rua e a exploração de cafetinas. Mas a narrativa de Alejandro não se limita às duas crianças. Personagens secundários aparecem e somem da trama, entrelaçando-se à história, que se passa numa Salvador talvez invisível aos olhos dos turistas ; e até mesmo dos moradores. Retratar a pobreza com poesia, sensibilidade e, acima de tudo, mostrar o lado humano dessas pessoas é o grande mérito de A rainha do cine Roma.
Incrível também a capacidade que o escritor tem de ;atravessar; as fases dos personagens centrais. Ao mesmo tempo em que conta a história das crianças, Alejandro passa ao leitor a sensação de que Betinho e Maria Aparecida envelhecem a cada página virada. Mas nada fora do contexto. Tornarem -se adultos, neste caso, não é obra da natureza, mas do meio em que vivem. Uma questão de sobrevivência.
Doutorando em literatura latino-americana com tese sobre a literatura marginal, Alejandro desenvolve diversos projetos ligados à área social. ;A relação entre o ativismo e a literatura é complexa. Ambos implicam um compromisso com o nosso mundo e uma posição crítica perante a injustiça e a desigualdade;, defende. O escritor, no entanto, alerta para o risco de o trabalho ser visto de uma outra maneira. ;Isso representa um risco para a literatura, que pode facilmente se tornar panfletária ou de bandeiras e punhos levantados;, analisa. Antes de A rainha do cine Roma, Alejandro havia lançado os livros de contos Vidas de rua e Contos mexicanos. Atualmente, o escritor vive no estado mexicano de Chiapas, desenvolvendo trabalhos com as comunidades indígenas.
TRECHO DO LIVRO
;Ficamos quase um ano morando no largo do relógio de São Pedro, nessa nossa casa improvisada de papelão, deixando a vida correr, se virando pra comer e ganhar uns trocados. Vida complicada nas ruas, sabe... Vida de cão. Mas, naquele tempo, a gente nem pensava muito na questão. Era o que era, só isso. Vide de pivete, vida de meninos de rua. A gente curtia, só fazia o que nos dava na telha e não tinha ninguém pra ficar dizendo o que podia ou não podia fazer. Mas passávamos por muita ruindade. Sempre ligados, sempre de olho pra ninguém fazer alguma merda com a gente, sempre com fome, sujos, fedidos. ; coisa. E de tanto o povo ficar tratando a gente como bicho, a pessoa começa a achar que é bicho mesmo, começa a agir como bicho, fazer qualquer besteira sem pensar em mais nada. É o cão. Mas o mais difícil é ficar centrado, não perder a cabeça, não se meter em merda que não dá em nada que preste. É... o diabo é esse: como fazer pra não virar bicho. O resto... é resto...a gente vai driblando. Se conseguir não virar bicho...;