postado em 06/09/2010 09:23
O cineasta Adirley Queirós acaba de concluir as filmagens de A cidade é uma só, o quarto filme da carreira. Na obra, ele tece experimentos cinematográficos baseados nos ensinamentos dos franceses Edgard Morin e Jean Rouch (pioneiros do cinema verdade durante os anos 1960). Misturando documentário e ficção, a fita cruza histórias reais e fictícias de habitantes de Ceilândia e de Águas Lindas. "Não existe contemplação. Os personagens enxergam o Plano Piloto entre cochilos dentro do ônibus ou pelo movimento de motos na correria do dia a dia", explica. A premissa é o depoimento real de Nancy Araujo.
Em 1970, Nancy era uma criança, moradora da área que mais tarde ficaria conhecida como Ceilândia, escolhida para fazer parte do coral que cantaria o jingle da cínica campanha A cidade é uma só, encabeçada por uma socialite da época e pelo governador Hélio Prates. "Nancy andou de avião e pela primeira vez conheceu o Plano Piloto. Ela e outras 15 crianças cantavam a música da campanha feita para expulsá-los do DF", resumiu o diretor, com indignação.
Queirós dispara palavras com velocidade, articulando discurso honesto sobre as tensões entre centro e periferia. "Eu não me considero um cineasta de periferia. Engraçado, quando a gente exibe nossos filmes fora de Brasília, ninguém vê a gente assim. Não existe paternalismo ou condescendência", declara.
No que pode soar como uma contradição para alguns, o cineasta é defensor ferrenho do patrocínio do Estado por meio de editais, como chance de amadurecimento de coletivos de cinema. "Eu ouço, em depoimentos, o pessoal dizendo que fez filmes sem custo. Isso é um desserviço. Historicamente, a periferia não teve acesso as tecnologias necessárias para a realização de um filme como a classe média brasiliense já tem. Não estou dizendo que isso é um problema. O que me preocupa muito é o jeito que se articula essa hierarquia de poder. A gente luta por mercado, por maior apoio do Estado. O FAC (Fundo de Apoio à Cultura/GDF) e o MinC são importantes sim. Ninguém faz filme de graça. O dinheiro tem sempre de sair de algum lugar", dispara.
Sementes
Uma breve biografia do cineasta Adirley Queirós, 40 anos, inclui uma trajetória como jogador de futebol profissional do Ceilândia. Uma contusão no tornozelo o tiraria do esporte para sempre. Fez o curso de cinema da Universidade de Brasília (UnB) somente para poder exibir uma carteirinha de estudante universitário e evitar os baculejos da polícia. "Nunca tinha visto um documentário na vida. No primeiro dia de aula, me deu vontade de sair correndo. Minha cultura audiovisual era Rambo e Sessão da Tarde", relembra.
O projeto de conclusão de curso, o documentário Rap, o canto da Ceilândia, foi ovacionado no 38º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2005, levando os prêmios de melhor curta-metragem em 35mm eleito pelos júris popular e oficial.
O Rap seria a semente do Coletivo de Cinema em Ceilândia (CeiCine), que também produziu o documentário sobre os bastidores da segunda divisão do futebol candango Fora de campo, baseado na história pessoal do realizador. Exibido no festival É tudo verdade deste ano, arrancou elogios da crítica e foi o único brasileiro selecionado no Festival Docs, do México. O curta-metragem Dias de greve recebeu o troféu Câmara Legislativa no Festival Brasília do Cinema Brasileiro do ano passado.
CINCO PERGUNTAS
Qual o balanço da trajetória da CeiCine até agora?
A proposta inicial era discutir a representação da Ceilândia. Nós funcionamos como qualquer coletivo do mundo, pessoas entram e saem. Estamos sempre abertos para discussões. Ainda acredito na construção desse coletivo. Nós dizemos sempre que não somos os únicos em Ceilândia. A gente tem muito medo disso, de as pessoas acreditarem que dentro de uma cidade com 800 mil pessoas (segundo estatísticas do IBGE), só a gente pensa em cinema. Não somos os únicos aqui.
A CeiCine é produto de um marco de revolução no cinema com a inserção do digital. Mas, como fazer para se profissionalizar na área?
Se não fosse o digital, a gente nunca conseguiria fazer o nosso primeiro filme. Para produzir em película, é necessário ter ganho edital. Já fizemos três filmes assim. Mas, nem sempre dá para ganhar. Sem os editais, podemos fazer trabalhos menores. Eu sempre respondo em debates que ninguém faz filme sem dinheiro. Nada tem custo zero. Em Ceilândia, se o pessoal quer fazer cinema, tem de largar o emprego. Nada contra quem faz cinema sem grana. Mas, acho que a perspectiva de quem faz cinema é poder viver disso. Pagar o aluguel, a luz, o telefone. Eu e o mundo todo achamos que o digital é uma revolução sim. Mas, somos todos afetados pelas coisas boas e ruins dele.
Quais são as coisas boas? E as ruins?
Qualquer um pode produzir hoje em dia. O formato não quer dizer nada. O que vale é a pegada que você tem. É o estudo da linguagem de cinema. As técnicas são antigas. Mas, nós estamos perdendo a chance de aprimorar a técnica. Um fotógrafo digital hoje pode deixar tudo no automático. Então, a foto que a gente faz em Ceilândia é igual à do Plano, que é igual à de Nova York. Sei lá, perdemos o sentimento em relação à luz da cidade. O Cartier-Bresson fotografava com a mente. A câmera era só um mecanismo. Hoje em dia, a gente dispara o mecanismo para ver no que vai dar. A CeiCine se inclui nisso também. A gente não é vanguarda em relação a isso. Acho que a gente é vanguarda em relação ao pensamento. Mas, em relação à prática, falta muito para a gente também.
O 5X favela - Agora por nós mesmos seria uma espécie de marco da democratização dos meios de produção no Brasil?
Estou ansioso para assistir. Eu sou muito associado a esse tipo de filme. Sempre fui. Mas, de novo, como é isso? Espero que a galera esteja mesmo à frente da produção. O 5X foi produzido na perspectiva de cinemão, com grandes produtores por trás. Deve ter muita grana porque entrou em festivais internacionais. Como eles conseguiram entrar em um circuitos desses? Não acho isso ruim não. Mas, o discurso ainda é equivocado. A minha desconfiança é em relação ao discurso da inclusão, da circulação feita sem traumas. Não existe isso.
Vocês se enquadram no estereótipo de um cinema da periferia?
Nós temos muitas afinidades em relação à experiência de viver na periferia. Mas entramos em conflitos de ideias quando participamos de debates com outros grupos. Não acredito que já exista uma linguagem de cinema periférico. É como se não existissem nuances na periferia. Existe um discurso fascista e opressivo de que a periferia tem de ser representada de uma maneira só. Mas, não é o filme que eu gostaria de ver na tela.