Fosse outro o ponto de vista, o ladrão viraria profeta e o profeta passaria despercebido. Fosse outro o mundo, os autores dos livros sagrados, num desvio sutil, poderiam facilmente mudar os rumos das grandes religiões. José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta não são autores sagrados, apóstolos ou profetas, mas acharam por bem escrever um romance no qual são árbitros de um evangelho cujo link está na própria Bíblia, sagrada para judeus e cristãos. Se o sacrossanto livro permitisse hiperlinks, aqui está o caminho sugerido pela dupla de escritores: pescado num mar de sagradas citações, o bandido Barrabás seria o protagonista da história. E é por aí que se chega a O evangelho de Barrabás. Pimenta e Torero, ambos roteiristas, há 10 anos não publicavam um romance a quatro mãos e trataram de fazer isso agora para contar como teria sido a vida do bandido Barrabás caso narrada em livro sagrado. Como já haviam feito em Os vermes e Terra papagalli, a dupla costura a narrativa na base do "e se?". Partem de um universo familiar ao leitor para acoplar situações imaginárias sempre carregadas de humor. Em Os vermes, a voz do narrador saía do bicho instalado no corpo de um político e Terra papagalli propõe uma história do Brasil pela ótica de um desconhecido e debochado condenado. Se o primeiro é enfadonho e repetitivo na ladainha política-sujeira e o segundo cansativo por conta de um narrador que imita o português dos tempos de Cabral, a saga de Barrabás traz leva de acertos agradáveis. Torero e Pimenta não procuram mimetizar a linguagem bíblica. Felizmente, tiram do livro sagrado apenas as informações que ajudam a reconstituir época, personagens e histórias contidas na Bíblia e transpostas para o universo do bandido. Quando Poncio Pilatos apresentou ao povo a opção de soltar Jesus ou Barrabás, a massa escolheu o bandido, o que fez do personagem figura suficientemente interessante para Torero e Pimenta. "Era um cara mais conhecido, famoso e querido que Jesus, tanto que foi salvo. Foi escolhido pelo povo. Começamos a pesquisar bastante sobre quem poderia ter sido Barrabás, lemos a Bíblia para tirar referências, fomos tirando de nomes até fatos, micro-histórias", diz Torero, que já foi católico mas largou a crença e hoje é ateu. Barrabás se torna então um verdadeiro profeta na visão dos escritores, que mergulham em metáforas e alusões à vida de Jesus para narrar a fictícia trajetória do bandido. Barrabás, como seu oposto, nasceu de mãe virgem. Se desgarrou dos pais muito jovem e foi resgatado por um bando de arruaceiros, cujo líder era pai de Maria Madalena. Barrabás e a garota cresceram juntos, viraram melhores amigos e amantes antes que ele fosse deserdado pelo pai da menina e passasse anos vagando pelo deserto. Quando reencontra o bando e os amigos de infância, Barrabás se torna líder venerado, mas Maria Madalena, a única crente de toda a história, já partiu em busca de um profeta para adorar. A moça tem fetiche pelos portadores de tal título e coleciona seguimentos. Um dia reencontra Barrabás e decide segui-lo porque acredita ser ele um profeta também. Mas como era bandido, abençoava por meio do barro, e não da água benta. E por aí segue o delírio de Torero e Pimenta. Episódios clássicos como a transformação da água em vinho e a capacidade de andar sobre as águas estão presentes na vida de Barrabás, mas nunca são simples milagres e sim resultado deturpado de uma verdade incontornável. Ele não anda sobre as águas, equilibra-se em um pedaço de pau. Não transforma água em vinho, mas convence os convidados de um casamento a tomar água turva. "Talvez tudo seja uma questão de ponto de vista do crente. Talvez o crente é que faça o milagre na cabeça dele. De certa forma, o personagem principal, o mais interessante do livro, é o crente, simbolizado pela Maria Madalena, que ama o profeta", arrisca Torero. E por aí vai, até beirar o politicamente incorreto. Na verdade, o Barrabás da dupla de escritores é um sujeito muito simpático e humano, transformado em profeta pelo amor de uma moça maluca, porém consciente de sua condição bandidesca e mortal. O evangelho de Barrabás é entretenimento puro. Sem a pretensão de ser mais que isso.