Diversão e Arte

Livro de escritor português discute a relação do homem com a máquina

postado em 13/09/2010 08:00
Portugal perdeu José Saramago há três meses, mas não pode dizer que está órfão de bons escritores. Pelo menos desde 2001, ano de estreia de Gonçalo M. Tavares, hoje com 40 anos e já consagrado como um dos mais importantes da península. O público brasileiro pode verificar a qualidade desse jovem e prolífico autor, dono de mais de duas dezenas de volumes publicados, entre literatura, poesia e teatro, no romance A máquina de Joseph Walser, a última parte da tetralogia O reino a chegar ao país. Apesar de ser o último a receber edição nacional, Joseph Walser é, cronologicamente, o segundo livro da série, iniciada por Um homem: Klaus Klump, e concluída por Jerusalém, premiado com o José Saramago 2005 e o Portugal Telecom 2007, e Aprender a rezar na era da técnica, todos com o selo da Companhia das Letras. O operário Joseph Walser é um sujeito ao mesmo tempo comum e incomum. Na fábrica onde trabalha, manipula uma máquina industrial com precisão e diligência. Em casa, prefere contemplar a misteriosa coleção de peças metálicas a aproveitar o tempo livre com a mulher, Margha. As noites de sábado tampouco interessam ao convívio com a esposa: é hábito jogar dados e apostar algum dinheiro na casa do colega Fluzst. Mesmo com a chegada da guerra, Walser permanece com a mesma neutralidade. Ou seria maldade? As edições portuguesas de O reino, impressas pela editora Caminho, receberam capas totalmente negras, o que deixa clara a temática soturna do conteúdo. Tavares explica: ;Não diria que é apenas sobre a parte sombria e obscura da humanidade. Mas é tentar perceber que no ser humano há esse afinamento entre dois motores, o da bondade e o da maldade. O motor da maldade que existe na gente está em confinamento e acelera em determinadas circunstâncias;. Em Joseph Walser, a aceleração se dá pelo afastamento daquilo que não consegue entender, como a guerra. O seu interesse se concentra em apenas duas coisas: a valiosa coleção, trancada à chave em um quarto, nunca antes conhecida pela esposa, e o contato com a máquina, que vai muito além da simples preocupação com a eficiência profissional. Ao se debruçar sobre a máquina, Walser sente que o som da batida do seu coração e o ruído do mecanismo da máquina se confundem. Ele é apaixonado pela neutralidade da tecnologia, que não pode ser considerada boa ou má. É apenas exata e funcional. Já a guerra, iniciada por um exército estrangeiro, é desinteressante. A mente de Walser não parece mudar nem quando a máquina o ;ataca;. A manga da mão esquerda, presa na engrenagem, o obrigou a usar a direita para se soltar. O braço ajudante escorregou para o interior do aparelho e esmagou-lhe um dos dedos. Mesmo sem o indicador direito e transferido de função na fábrica, o cotidiano de Walser foi pouco modificado. ;Já vi leitores considerarem Walser como uma pessoa tão indiferente que é maldosa. Mas há também uma outra interpretação possível: associar essa indiferença a uma certa sensatez ou lucidez, quase no limite de uma sabedoria;, analisa Tavares. O escritor é econômico. Distribui 27 capítulos curtos em apenas 163 páginas, e quase não atribui falas a Joseph Walser. É exatamente por meio da indiferença diante dos debates acalorados dos amigos sobre a guerra e dos monólogos excessivos de Klober, o encarregado da fábrica, que o ficcional Walser é construído. Num dos primeiros ;discursos; direcionados a Walser, Klober filosofa: ;Ser feliz já não depende de coisas que vulgarmente associamos à palavra Espírito. Depende de matérias concretas. A felicidade humana é um mecanismo;. A ficção de Tavares conseguiu ultrapassar os limites da alegoria. Trechos "Era um homem estranho e a sua mulher não pôde deixar de rir ao escutá-lo. Como se fossem materiais que pensam, dissera Joseph Walser. Claro que os humanos eram materiais que pensavam! Materiais com alma, diria mesmo Margha. Joseph Walser dirigiu-se ao seu compartimento. Margha nem sequer levantou os olhos. Walser era coleccionador. De quê? Ainda é cedo para o dizer. Mas nessa manhã havia aumentado com significado a sua colecção. Vestia umas calças simples, quase de camponês, e os seus sapatos castanhos estavam absolutamente fora de moda. A mulher disse: ; Estás vestido como noutro século. Já ninguém pensa assim."

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