postado em 13/09/2010 08:15
"No cinema, o que me fascina é o mistério", observou o cineasta Claude Chabrol à revista Positif, em 2005. A afirmação pode parecer redundante: numa longa trajetória, com mais de 50 títulos para o cinema e a tevê, o diretor declarou em diversas ocasiões a admiração por filmes de suspense, sobretudo aqueles assinados por Alfred Hitchcock. Mas, muito além das tramas intrincadas que são típicas do gênero, era um outro enigma que arrebatava um dos principais mentores da nouvelle vague. "Apesar de ter feito vários thrillers, eu não me interesso verdadeiramente pelas tramas dos filmes. O que me motiva é o mistério que existe em cada personagem", explicou o cineasta.
Com a morte de Chabrol, aos 80 anos, o cinema perde um olhar vigilante (e, em muitos momentos, profundamente irônico) para as relações humanas. "Acredito nas estruturas narrativas que nascem do confronto entre diferentes personagens. É uma química da afinidade", definiu. Desde 1958, quando lançou o primeiro longa-metragem (Nas garras do vício), o parisiense demarcou um estilo austero que não parecia - pelo menos à primeira vista - dialogar com as experimentações radicais de Jean-Luc Godard ou com o sentimentalismo de François Truffaut, colegas da revista Cahiers du Cinéma.
Chabrol defendeu uma guerrilha mais sutil: respeitou muitas das convenções do cinema narrativo americano, "clássico", sem com isso abrandar a verve da contestação. Uma de suas maiores referências, o austríaco Fritz Lang, o ensinou a valorizar o engenho, a carpintaria do cinema, a transitar por diferentes gêneros. Ele usou esse empenho técnico, no entanto, para destilar comentários atrevidos sobre a burguesia francesa. Em Mulheres fáceis, de 1960, provocou falatório ao mirar a lente venenosa para o cotidiano de quatro mulheres de Paris. "Eu quis fazer um filme vulgar sobre pessoas estúpidas. Mas ele não é um retrato pessimista sobre o ser humano, e sim sobre a forma como ele vive", comentou, em 1963, à revista Movie.
O tom crítico dos filmes de Chabrol, ainda que incisivo, foi alvo frequente de mal-entendidos. Nos anos 1960, ganhou a pecha de cínico e frio. Mas reverteu o estigma com sucessos comerciais como as fitas de detetive Frango ao vinagrete (1985) e Delegado Lavardin (1986). Hoje, é reconhecido como um dos pioneiros da renovação do cinema francês (na virada da década de 1950 para a de 1960), e um dos autores mais prolíficos da segunda metade do século 20. "Ele era um grande cineasta que mostrava humor e truculência, tanto nos filmes quanto em sua vida", definiu o presidente Nicolas Sarkozy, em depoimento na tevê. A morte do artista foi anunciada ontem pelo chefe do departamento de cultura da prefeitura de Paris, Christophe Girard, sem detalhes sobre a causa do falecimento.
A arte da cinefilia
Como os jovens críticos da Cahiers do Cinéma com quem conviveu, Chabrol fez da cinefilia um ofício. Antes de escrever sobre filmes, trabalhou no departamento de publicidade da Fox. Em 1956, com o dinheiro de uma herança, formou uma pequena companhia de produção e financiou o curta Le coup de Berger, dirigido por Jacques Rivette. Do próprio bolso, produziu Nas garras do vício e Os primos, obras inaugurais da nouvelle vague. Ao longo da carreira, refletiu sobre temas como sexualidade, relações amorosas e a crise moral da burguesia. Sem abandonar, contudo, o gosto por gêneros populares do cinema americano, como o noir e o melodrama. A exemplo dos ídolos hollywoodianos, recusava poucos projetos que eram oferecidos a ele.
Para um autor tão comprometido com os personagens, o trabalho com atrizes como Stéphane Audran (de 25 filmes, entre eles as obras-primas A mulher infiel e O açougueiro), com quem se casou, e Isabelle Huppert (de fitas como Mulheres diabólicas) se mostrou essencial para o estilo que desenvolveu. Em 2009, recebeu um prêmio pelo conjunto da obra no Festival de Berlim. Naquela época, lançou o último longa, o thriller derradeiro, Bellamy, em que comemorou os 50 anos de carreira trabalhando com Gerard Depardieu. Entre as produções recentes, A teia de chocolate (2000), A dama de honra (2004), A comédia do poder (2006) e Uma garota dividida em dois (2007) são provas de que o cineasta não diluiu as marcas que o consagraram: a elegância e a petulância.