postado em 14/09/2010 07:57
Meninas de saias indianas, rapazes com cabelos dreadlock, famílias com crianças pequenas, jovens casais e muitas outras tribos dividiram harmonicamente os gramados da Funarte no sábado e domingo, durante o 6º Festival Brasília de Cultura Popular. A pernambucana Renata Rosa fechou o festejo, cantando e tocando sua rabeca até quase o início da madrugada de segunda-feira, fazendo o povo dançar com um show visualmente rico e referências que passam, entre outras, pelo coco, pelo maracatu rural e por ritmos mouros e ibéricos.
O ápice de público presente no domingo, no entanto, foi durante as duas apresentações que antecederam a de Renata. O carioca Jongo da Serrinha e o "dono da casa", Seu Estrelo e Fuá do Terreiro, fizeram a poeira subir nas duas grandes tendas armadas no espaço. Sob o comando de Tia Maria, de 90 anos, o grupo de Madureira, subúrbio carioca, levantou adultos e crianças na cadência da umbigada. Não menos empolgado estava o público, jovem em sua maioria, que acompanhou a apresentação de samba pisado, invenção de Seu Estrelo e Fuá do Terreiro.
Liderado por Tico Magalhães, curador do evento, o grupo já havia interpretado, na noite de sábado, o mito do calango voador, brincadeira criada pela trupe com elementos típicos do cerrado. Pela primeira vez, o calango chegou, literalmente, voando - de tirolesa - para delírio da plateia presente. Outro calango chegou pelo meio do público, conduzido por seis atores/manipuladores.
A união de tribos foi o traço marcante do festival. No meio da tarde de domingo, a TendErê, espaço criado especialmente para o público infantil, estava lotada de crianças desenhando e pintando à vontade. No palco, a brasiliense Circo Companhia Fluxo e a baiana Vagamundi também prenderam a atenção dos pequenos. A feira cultural, com meia dúzia de expositores, ficou devendo em quantidade e variedade. Mas a praça de alimentação, embora diminuta, oferecia cardápio variado de guloseimas e era parada obrigatória, principalmente nos intervalos dos shows. Dos caldos ao fondue de chocolate, passando pelo pastel integral, o cuscuz e a pizza, o espaço sintetizou perfeitamente o encontro de tribos que foi o festival.
Quatro perguntas - Tico Magalhães
Criador e curador do evento, o pernambucano Tico Magalhães lidera a trupe de Seu Estrelo e Fuá de Terreiro. Publicitário por formação, brincante por opção, ele anuncia que, no ano que vem, o festival volta a ter três dias de atrações para o público e comemora o fato de a casa do grupo, na 813 Sul, ter sediado parte da programação inicial do evento, o Troca de Saberes, com discussões sobre cultura popular entre os participantes.
Qual o saldo do 6º Festival Brasília de Cultura Popular? O que muda para o próximo ano?
Pela primeira vez abrimos a nossa sede e foi um diferencial levar os grupos de fora para conhecer o nosso espaço. Quero repetir isso, porque no terreiro podemos fazer a brincadeira como ela é. O festival tem o sucesso do espetáculo, mas é da sede que exploramos o mundo. Acabamos de nos tornar ponto de cultura do Ministério da Cultura e de lá estaremos conectados a outros desses. Neste ano, uma coisa bem legal que aconteceu foi a chegada do calango voando, pela primeira vez. Mas por ser período eleitoral e até para preservar o grupo, fizemos só dois dias de festival. No ano que vem, voltam a ser três dias.
Como é o trabalho de curadoria e seleção das atrações?
Vai muito da identificação com a gente. A força do som ou da estética, além de referências, como A Barca (grupo paulista que trabalha com pesquisa de cultura popular brasileira). Por intermédio deles, chegamos a uma das atrações deste ano: o Redandá, da capital paulista, grupo que praticamente nunca saiu de lá. Hoje em dia também temos muitos parceiros, um fala de outro e isso forma uma grande rede.
Uma tradição inventada, como o mito do calango voador, pode ser legítima, perpetuar-se?
A cultura popular está muito voltada para o presente. Se você ouvir versos de maracatu rural percebe que eles falam do que está acontecendo agora. Claro que há muitos fundamentos que são religiosos, mas a sonoridade, a estética estão em movimento o tempo todo. Mestre Grimário, de um grupo de cavalo-marinho no interior de Pernambuco, quando viu Mané Avesso (um dos personagens do mito do calango), levou-o para a sua brincadeira. Isso mostra que estamos em movimento. A gente começou uma brincadeira e quis dividir com as pessoas. O tempo é que vai dizer no que vai dar.
Daí ser possível ter uma manifestação própria de Brasília?
O Seu Estrelo tem uma proposta pretensiosa, que é criar uma futura tradição para a cidade, um brinquedo. É preciso que ela surja em algum momento, Brasília é uma cidade sem passado, cujas manifestações, por mais interessantes que sejam, nasceram em outros lugares. Era preciso ter algo ligado ao que foi a utopia do surgimento de Brasília, cidade inventada que, pela sua junção de culturas, tem muito a contribuir para a renovação da cultura popular do país.