Diversão e Arte

Eduardo Moscovis lê oito crônicas de Zuenir Ventura, hoje, no CCBB

postado em 15/09/2010 08:00
Curioso é o termo usado pelo jornalista e escritor Zuenir Ventura para definir sua expectativa sobre o encontro com o ator Eduardo Moscovis, hoje à noite, na terceira edição do projeto Escritores brasileiros, no Centro Cultural Banco do Brasil. Primeiro porque, apesar de veterano em eventos literários, o autor nunca teve um texto seu lido por um ator; segundo, porque não conhece pessoalmente Moscovis, com quem só terá contato quando chegar à capital. ;Acho que os textos terão sabor de primeira leitura para mim;, comenta.

Zuenir Ventura: O autor escolheu oito crônicas para a apresentação, entre comédias, dramas e observações do dia a dia. Quase todas têm a cidade do Rio de Janeiro como palco, o que, somado ao sotaque carregado de Moscovis, dará um sabor bem carioca ao encontro. ;Até pensei em botar um trecho do Inveja (Inveja ; mal secreto, livro da série sobre os sete pecados capitais escrito por Zuenir para a editora Objetiva), mas achei que ficaria melhor com textos que tivessem começo, meio e fim;, diz ele, que incluiu na seleção O idoso na fila do Detran, crônica publicada no Jornal do Brasil, em 1996, e é um dos seus textos mais conhecidos.

Já na apresentação, em que contará um pouco de sua vida e obra para o público, Zuenir prefere improvisar. ;É conversa, não palestra. Vou falar sobre o meu trabalho, a minha vida, coisas que penso. Embora tenha ido a Brasília várias vezes, inclusive no próprio CCBB, estou muito curioso sobre como as pessoas vão reagir;, afirma ele, um ex-professor que adora o clima informal desse tipo de evento, além da oportunidade de falar ao público.

Para Eduardo Moscovis, é uma honra ler crônicas de um autor cujo texto considera tão presente em sua vida. ;Seu jeito de escrever é peculiar, cria proximidade e identificação. E essa relação que ele estabelece com o cotidiano é bem gostosa;, assinala Moscovis.

Oficinas de leitura
Além de conhecer melhor a vida e a obra de Zuenir Ventura, o público interessado em literatura pode participar das oficinas programadas para o próximo sábados. Na parte da manhã, das 9h30 às 12h30, o doutor em literatura Ricardo Oiticica abordará o tema Jornal e leitura; das 14h às 17h, é a vez de Gilda Carvalho apresentar Biografia e ficção.

ESCRITORES BRASILEIROS
Palestra e leitura de textos de Zuenir Ventura, com a presença do autor e do ator Eduardo Moscovis. Hoje, às 19h30, no Teatro I do CCBB Brasília (SCES, Trecho 2, Conjunto 22; 3310-7087). Entrada gratuita mediante retirada de senha, distribuída uma hora antes. Duração de 105 minutos. Classificação indicativa: 12 anos.

Trecho

Um idoso na fila do Detran
Jornal do Brasil, 7/9/96

;O senhor aqui é idoso;, gritava a senhora para o guarda, no meio da confusão na porta do Detran da Avenida Presidente Vargas, apontando com o dedo o tal "senhor". Como ninguém protestasse, o policial abriu caminho para que o velhinho enfim passasse à frente de todo mundo para buscar a sua carteira.

O jornal tem recebido muitas cartas elogiando e outras criticando aquele departamento de tão má reputação. Afinal, melhorou ou não o serviço? Cheguei a pensar em sugerir à editoria de Cidade que mandasse fazer uma daquelas matérias em que o repórter desse o seu testemunho. Simularia tirar uma carteira e assim desfaria as dúvidas.

Agora, ali, no posto da Gávea, esperando a minha vez, eu me sentia fazendo as funções desse repórter, e tudo começava bem. A operação toda não demorou nem meia hora e eu já ia aplaudir o atendimento, quando, ao lado da boa notícia - aprovação no exame de vista - me deram uma má: teria que ir à Avenida Presidente Vargas para pegar a carteira.

Foi assim que acabei assistindo àquela confusão de que falei no início. Aliás, não só assisti como dela participei: o ;idoso; que a dama solidária queria proteger do empurra-empurra não era outro senão eu.

Até hoje não me refiz do choque, eu que já tinha me acostumado a vários e traumáticos ritos de passagem para a maturidade: dos 40, quando em crise se entra pela primeira vez nos ;enta;; dos 50, quando, deprimido, se sente que jamais vai se fazer outros 50 (a gente acha que pode chegar aos 80, mas aos 100?); e dos 60, quando um eufemismo diz que a gente entrou na "terceira idade". Nunca passou pela minha cabeça que houvesse uma outra passagem, um outro marco aos 65 anos. E, muito menos, nunca achei que viesse a ser chamado, tão cedo, de "idoso", ainda mais numa fila do Detran.

Na hora, tive vontade de pedir à tal senhora que falasse mais baixo. Na verdade, tive vontade mesmo foi de lhe dizer: ;idoso é o senhor seu pai;. O que mais irritava era a ausência total de hesitação ou dúvida. Como é que ela tinha tanta certeza? Que ousadia! Quem lhe garantia que eu tinha 65 anos, se nem pediu pra ver minha identidade? E o guarda paspalhão, por que não criou um caso, exigindo prova e documentos? Será que era tão evidente assim?

Como além de idoso eu era um recém-operado, acabei aceitando ser colocado pela porta adentro. Mas confesso que furei a fila sonhando com a massa gritando, revoltada: ;esse coroa tá furando a fila! Ele não é idoso!
Manda ele lá pro fim!” Mas que nada, nem um pio.

O silêncio de aprovação aumentava o sentimento de que eu era ao mesmo tempo privilegiado e vítima - do tempo. Me lembrei da manhã em que acordei fazendo 60 anos: ;Isso é uma sacanagem comigo;, me disse, ;eu não mereço;. Há poucos dias, ao revelar minha idade, uma jovem universitária reagira assim: ;Mas ninguém lhe dá isso;. Respondi que, em matéria de idade, o triste é que ninguém precisa dar para você ter. De qualquer maneira, era um gentil consolo da linda jovem. Ali na porta do Detran nem isso, nenhuma alma caridosa para me ;dar; um pouco menos.

Subi e a mocinha da mesa de informações apontou para os balcões 15 e 16, onde havia um cartaz avisando: ;Gestantes, deficientes físicos e pessoas idosas;. Hesitei um pouco e ela, já impaciente, perguntou: ;o senhor não tem mais de 65 anos, não é idoso?;

- Não, sou gestante - tive vontade de responder, mas percebi que não carregava nenhum sinal aparente de que tinha amamentado ou estava prestes a amamentar alguém. Saí remungando: ;não tenho mais, tenho só 65 anos;.

O ridículo, a partir de uma certa idade, é como você fica avaro em matéria de tempo: briga por causa de um mês, de um dia. ;Você nasceu no dia 14, eu sou do dia 15;, já ouvi essa discussão.

Enquanto espero ser chamado, vou tentando me lembrar quem me faz companhia nesse triste transe. Aí, se não me falha a memória - e essa é a segunda coisa que mais falha nessa idade - me lembro que Fernando Henrique, Maluf e Chico Anysio estariam sentados ali comigo. Por associação de idéias, ou de idades, vou recordando também que só no jornalismo, entre companheiros de geração, há um respeitável time dos que não entram mais em fila do Detran, ou estão quase não entrando: Ziraldo, Dines, Gullar, Francis, Evandro Carlos, Milton Coelho, Janio de Freitas (Lemos, Barreto, Armando e Figueiró já andam de graça em ônibus há um bom tempo). Sei que devo estar cometendo injustiça com um ou outro - de ano, meses ou dias - e eles vão ficar bravos. Mas não perdem por esperar: é questão de tempo.

Ah, sim, onde é que eu estava mesmo? ;No Detran;, diz uma voz. Ah, sim. ;E o atendimento?; Ah, sim, está mais civilizado, há mais ordem e limpeza. Mas, mesmo sem entrar em fila, passa-se um dia para renovar a carteira.

Por via das dúvidas, acho melhor o jornal mandar um repórter não-idoso fazer a matéria. Este texto também está no livro Crônicas de um fim de século.

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