Severino Francisco
postado em 26/09/2010 17:09
Noel Rosa, o poeta de Vila Isabel, era tão magro que quando ficava de lado todos pensavam que ele estava ausente. Era quase tão magro quanto o seu parceiro Lamartine Babo, que, ao ser convidado para uma partida de futebol, respondeu: "Aceito, se não estiver ventando." Mas é impressionante como o espírito bem-humorado, crítico, elegante e gozador do Rio de Janeiro se encarnou no rapaz magricela de Vila Isabel.
Nós desmoralizamos com a palavra gênio na pós-modernidade. Dizemos assim: "Tomei uma cerveja genial" ou "comi um churrasco genial". Mas gênio é uma palavra que só se aplica a casos como o de Noel, de um talento absolutamente excepcional, que só viveu 26 anos e compôs 264 canções em cinco anos, algumas delas verdadeiras obras-primas da história da música popular brasileira. Ele produziu também várias peças radiofônicas e, uma delas, A noiva do condutor, chega agora em livro, com ilustrações de Laura Gorski.
Nascido de um parto a fórceps, que lhe deformou o queixo, nem por isso Noel deixou de merecer a atenção de uma série de belas mulheres, que o inspiraram a compor belos sambas: "Eu nascendo pobre e feio/Ia ser triste o meu fim/Mas crescendo a bossa veio/Deus teve pena de mim." Sempre foi salvo pela bossa e viveu numa época em que uma simples caixinha de fósforo poderia nascer um samba moderno e eterno. Sozinho, Noel realizou uma verdadeira semana de arte moderna no samba, tirando o fraque e a cartola da canção popular e extraindo poesia da fábrica de tecidos, da buzina do carro, do cinema falado e de outros novos signos urbanos. E também realizando uma ponte entre o morro e a cidade: "O samba na realidade/Não vem do morro nem da cidade/E quem suportar uma paixão/Verá então que o samba nasce no coração".
A noiva e o condutor é uma revista radiofônica em três atos, em que Noel exercita a mesma verve e espírito crítico que animam os seus sambas, espicaçando a volubilidade dos sentimentos femininos, a arrogância dos poderosos, o poder corruptor do dinheiro, os jogos de dissimulação e a hipocrisia social.
Em outras operetas, Noel utilizou o recurso da paródia, mas em A noiva e o condutor, ele só trabalhou com canções compostas especialmente para a peça, que só foi gravada em Long Play em 1985, nas vozes de Marília Pera, Caola, Grande Otelo e Oscar Bolão.
Serenatas
Nesta edição, os desenhos de Laura Gorski não ilustram o texto de Noel de maneira literal; ela explora livremente sugestões cômicas e líricas para jogar o leitor no mundo de Noel, povoado de bondes, serenatas na janela, roupas de pierrô e noites de lua. Os personagens da trama são o galanteador farsante Joaquim, seu pai milionário, a musa Helena e o seu pai, o sisudo Doutor Henrique.
Joaquim se apresenta como advogado para ganhar a simpatia de Helena, mas, na verdade, é um condutor de bondes, logo flagrado e desmascarado em sua farsa: "Ele se dizia advogado/Mas não passa de um descarado/Vamos chamar o investigador/Para agarrar esse falso doutor./Ele se dizia advogado". Mas tudo muda quando aparece o milionário Barbosa, pai de Joaquim. A condição de marginal, boêmio da lua e filósofo de botequim conferem a Noel um ponto de vista privilegiado para desvelar o jogo de interesses que comandam as relações sociais. Helena canta: "Eu fui noiva de um condutor/Prefiro bobo rico a um doutor".
Noel Rosa - A noiva do condutor
Da editora Terceiro Nome. ilustrações de Laura Gorski. 54 páginas. Preço médio: R$ 44.