postado em 27/09/2010 09:43
Eu vos abraço, milhões, ficção de Moacyr Scliar lançada recentemente, é narrada como se um avô estivesse contando a história de sua vida ao neto, talvez numa varanda, ambos aproveitando a preguiça gostosa de uma manhã dominical. E ao mesmo tempo se assemelha a uma longa e biográfica correspondência familiar. O velho homem é Valdo, natural de uma estância próxima a Santo Ângelo, município do Rio Grande do Sul. Adolescente na virada para os anos 1930, época de crise financeira mundial, Coluna Prestes e golpe de estado, ele abraçou o comunismo por meio dos livros: na escola, conheceu o filho da querida professora Doroteia, Geninho, e dele recebeu doutrinamento ideológico.
As ideias revolucionárias modificaram até mesmo seu gosto literário. Por achar que Machado de Assis não passava de um burguês, queimou um exemplar de Dom Casmurro, e avaliava Euclides da Cunha e seu Os sertões com indiferença. "Até muito pouco tempo atrás era uma crítica que muitos comunistas faziam a Machado", conta Scliar. Decidiu, mesmo ainda muito jovem, aos 15 anos, se tornar militante do Partido Comunista. Deixou a família, cuja sobrevivência dependia do emprego do pai, capataz de uma propriedade de um coronel, e partiu para o Rio de Janeiro, em busca do líder do Partido, Astrojildo Pereira. Mas a realidade encontrada vai de encontro ao sonho.
Acolhido por um camarada operário na antiga capital federal, encontra refúgio numa livraria, especialmente na estante reservada a publicações esquerdistas. "Você vê que a vida do rapaz gira muito em torno de livros. Era característico dessa geração. Uma geração que via muito do que lia. Os livros eram o abrigo dessas pessoas. Pessoas que acreditavam no texto como o religioso acredita na Bíblia. Tinha muita coisa de religião nisso aí", considera o escritor, um gaúcho que é de uma geração posterior à do ficcional Valdo, influenciada pelo período reproduzido no livro. E dois períodos que enchem os sulistas de orgulho. "Para o Rio Grande do Sul, foi um momento muito importante. De repente, na revolução de 30, os gaúchos assumiram o poder. Momentos assim pedem uma ficção", ele observa. Getúlio Vargas invade o cenário político antes dominado por mineiros e paulistas e o Brasil nunca mais seria o mesmo.
A trajetória de Valdo, de delirante sonhador a resignado trabalhador, confunde-se com a do próprio comunismo. Os ideais que alimentavam o sonho descambaram para o autoritarismo. "Quis separar dois componentes do comunismo. Uma é o sonho, a visão generosa de um mundo igualitário. É uma coisa que faz sentido. E não tem por que rejeitar. Outra coisa é o comunismo de chegar e manter o poder, que se expressou no stalinismo. Isso compromete irremediavelmente", afirma o autor.
Duas perguntas - Moacyr Scliar
Por que narrar a história como se um avô estivesse contando sua vida ao neto?
Eu quis sugerir a ideia de um depoimento pessoal, verídico e realista. Há muitos elementos tirados da vida real. O caminho que o Valdo seguiu foi muito comum às pessoas da geração que antecederam a minha. É uma figura típica. E no Rio Grande do Sul, o pessoal é sempre muito politizado. Faço várias alusões a isso. Prestes começou a carreira política no Rio Grande. É um estado em que as pessoas têm opiniões, se posicionam. É uma coisa que faz parte da história do Rio Grande do Sul.
É intenção sua analisar o comunismo por meio das experiências de Valdo?
Principalmente nesse momento, há muitas pessoas desiludidas com a política, pessoas que dizem que o ser humano não tem jeito, é podre mesmo. Minha longa experiência, seja como médico, escritor e ser humano, me faz acreditar nas pessoas. Todos nós temos esse lado generoso, esse lado solidário, e podemos cometer nossos erros, mas isso não quer dizer que a generosidade que existe em nós deva ser comprometida. Não fui membro do Partido Comunista, mas participei de movimento baseado na ideologia marxista-leninista. Havia a verdade reacionária e a mentira progressista. Certas coisas eram verdadeiras, mas tinha que negar. A mentira ajudava mais a revolução do que a verdade. Muitos comunistas negaram os crimes do Stálin. Isso é uma atitude dialética, a verdade contém em si a mentira e vice-versa. Isso acabou comprometendo o próprio rumo do comunismo. E olha só que coisa curiosa, quando estava escrevendo, abriu no Museu da República do Rio de Janeiro uma exposição sobre a história da república no Brasil, e tinha coisa da história do Partido Comunista. Havia uma reprodução do questionário de admissão no partido, que cito no livro. Copiei. Foi uma visita providencial. E várias outras coincidências. O Machado detestado, o menino que beijou a mão dele. Usei muitos elementos da realidade política, social e literária também. Por causa exatamente da relação do comunismo com a literatura.