Diversão e Arte

Peça traz constrangimento moral e sexual causados por chefe inescrupuloso

postado em 06/10/2010 08:00
Cena da peça Adelaide, a secretária: uma reflexão sobre as maneiras de enfrentar a coação onde quer que sejaAdelaide sonhava em se tornar diva de cinema, sempre com a cabeça no mundo dos musicais. Porém, nasceu décadas depois do que gostaria, quando as musas imortais da sétima arte já haviam saído de moda, e teve de se contentar com a carreira de secretária. Certinha e esforçada por natureza,esmerava-se no trabalho e fazia o inimaginável para agradar o chefe. O patrão, no entanto, se transforma no carrasco do enredo, expondo a funcionária a assédios, constrangimentos e a crueldades variadas. A mocinha sofredora é personagem da peça Adelaide, a secretária, mas reproduz com fidelidade, e sem deixar o humor de lado, o que muitos trabalhadores enfrentam em suas rotinas profissionais. Criado e dirigido pelos atores Ludmilla Valejo e Hugo Leonardo, o espetáculo terá três sessões, gratuitas, de hoje a sexta-feira, na Universidade de Brasília (UnB).

;Muita gente sofre e se sente coagida, mas continua trabalhando no mesmo local por necessidade, porque não pode abrir mão do dinheiro. Queríamos despertar a reflexão de que é possível encontrar caminhos para romper esse ciclo;, destacou o diretor Hugo Leonardo, da Cia. Colapso. Como o tema é espinhoso, a reflexão não poderia ser sisuda. A decisão, então, foi investir em improvisos e jogos cênicos para criar uma personagem mais divertida do que mártir, que despertasse mais solidariedade e riso do que piedade.

Ludmila, que integra a Companhia B de Teatro, interpreta Adelaide e não possui parceiros em cena. O chefe é uma sombra, feita pela atriz Gisele Niremberg, que surge no fundo do cenário sempre que o toque do telefone sinaliza o início do sofrimento da secretária. ;O teatro de sombras aumenta a interação e permite brincadeiras que o palco não permite;, destaca Hugo Leonardo. Exemplo desses jogos visuais é o momento em que o patrão ;introduz; um guarda-chuva goela abaixo de sua funcionária.

Para se manter no emprego, a coitada ainda tolera chicotadas, chuva de bolinha de papel e chega a enfrentar uma personificação de Hitler em sua frente. ;Abordamos também situações de assédio moral, sexual e problemas como LER e Dort (1). O foco são as relações de poder entre um ser humano que está em posição de oprimir o outro ao limite e seus subordinados. Tanto pode acontecer em uma pequena empresa quanto em uma grande fábrica;, destaca Ludmilla Valejo.

Drama
O argumento do espetáculo nasceu de uma experiência profissional da atriz e diretora. Por três anos, ela atuou em um projeto de saúde do trabalhador, no Ministério da Saúde, e teve de lidar com histórias trágicas de acidentes e até mortes no ambiente de trabalho. Sensibilizada, decidiu transpor o drama de milhares brasileiros para o tablado. ;Mas o caminho é a comicidade, e não a dureza. Quando as pessoas riem, conseguem se distanciar e se identificar com o personagem. Todos acabam torcendo por ela;, avalia Ludmilla Valejo.

Parceiro da atriz de longas datas, inclusive de uma dupla de palhaços que se apresenta em hospitais, Hugo Leonardo foi escolhido para dirigir a estreia da amiga em um espetáculo solo. Ele também comanda sozinho pela primeira vez.

Para direcionar bem o recado, a dupla escolheu com precisão quem receberia prioridade nas apresentações: alunos dos cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA). ;Muitos trabalham de dia e são obrigados e estudar de noite. Essas oportunidades raramente privilegiam os alunos dos horários noturnos;, explicou Leonardo.

Como muitos adolescentes entrarão, em breve, no mercado de trabalho, não ficaram de fora: a peça já passou por escolas da Expansão do Setor O, Ceilândia e Cidade Ocidental, com média de 200 espectadores por sessão. No fim da encenação, a equipe promove um debate e encontra trabalhadores ansiosos por contar histórias e dividir a angústia diária.

Diante do impacto que vem causando entre a plateia, os planos futuros já estão traçados: ;No próximo edital do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), tentaremos fazer com que o espetáculo circule pela maior quantidade possível de regiões administrativas e pelo Entorno;, avisa Ludmilla.

1 - Desgaste
Lesão por Esforço Repetitivo (LER) e Distúrbios Osteo-musculares Relacionados ao Trabalho (Dort) são doenças causadas pelo desgaste de estruturas do sistema músculo-esquelético, causadas por posturas inadequadas ou tarefas constantemente repetidas e também por tensão e estresse.

ADELAIDE, A SECRETÁRIA
Com Ludmilla Valejo e direção de Hugo Leonardo. De hoje a sexta-feira, às 12h30. Anfiteatro 9 do ICC Ala Sul ; Universidade de Brasília (UnB). Entrada Franca. Não recomendado para menores de 14 anos.

; Três Perguntas para Hugo Leonardo (co-diretor da peça Adelaide, a Secretária)

Qual a tônica da peça Adelaide, a Secretária?

É um trabalho lúdico e artístico, que aborda esse assunto espinhoso de forma bem humorada. Optamos por não colocar diálogos, então a desenvoltura do texto é conduzida pela sonoplastia. As cenas foram criadas a partir de jogos no palco e de investigações cênicas. Ludmilla Valejo atua com a sombra do chefe, num teatro de sombras que permite criarmos situações surrealistas. Brincamos com essas dificuldades do ambiente de trabalho e com o serviço burocrático

Em que elementos vocês se inspiraram para criar a personagem?

Sou amigo e parceiro da atriz Ludmilla Valejo em vários trabalhos. Acompanhei toda a fase em que ela desenvolveu projetos na área de Saúde do Trabalhador, no Ministério da Saúde. Eu também, vira e mexe, era obrigado a lidar com acidentes de trabalho, já que presto serviço de teatro institucional em diversas empresas. Para compor a Adelaide, usamos a linguagem de palhaço. O palhaço é o perdedor no mundo em que vivemos, por isso, tem que encontrar uma nova forma de dignidade para viver nesse mundo. Ele evidencia os desvios fundamentais. Sabe aquele defeito que todos nós temos e tentamos esconder? O palhaço revela e ressalta. Acaba virando uma figura despretensiosa, de grande generosidade e ganha as pessoas por esse prisma. Na Adelaide, destacamos a estranheza da figura física e sua conduta atrapalhada. Na tentativa de acertar, ela comete o erro.

Quem vocês pretendem sensibilizar com essa montagem?

Pessoas que trabalham sem desejo, apenas pela necessidade. Jovens que estudam à noite pra se aprimorar, porque já trabalham de dia. Adolescente que ainda não entraram no mercado de trabalho. Mas o tema se comunica com o público em geral. As pessoas gargalham, se envolvem, torcem pela secretária. No debate que realizamos depois de apresentação, todo mundo reflete, sem energia pesada, sobre o assunto. A maioria tem histórias pra contar. Há muitos chefes maravilhosos, que cuidam de sua equipe. Mas, infelizmente, existem os desvios.

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