Os deuses tentaram criar o homem quatro vezes. O primeiro molde foi feito de argila, mas como era desprovido de razão, foi destruído. O segundo era de madeira e o terceiro, de um tipo de cana-de-açúcar, mas como eles não tinham almas, foram eliminados depois de uma forte tempestade. Então, os criadores resolveram dar a cartada final e usaram espigas de milho para formar o homem e, finalmente, ficaram satisfeitos.
A famosa história do livro sagrado dos maias, Popul-Vuh, consegue resumir o amor de seus descendentes pela comida. Ela não apenas alimenta, como faz parte da formação da humanidade. A culinária é extremamente valorizada no México. Na gastronomia do país prevalecem a tradição e os costumes de mais de 3 mil anos. Por isso, ela pode se tornar a primeira no mundo a ser considerada patrimônio imaterial da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A candidatura foi aceita e o resultado de avaliação do órgão deve ser divulgado em novembro, durante uma reunião em Nairóbi, no Quênia.
Desde a época da civilização indígena, três ingredientes dominavam na região: o milho, o feijão e a pimenta. Eles eram preparados de forma rústica, com técnicas simples que permanecem até hoje nas cozinhas mexicanas. A chegada dos espanhóis há 500 anos trouxe modificações, mas não conseguiu ultrapassar a força os velhos costumes. ;A culinária no México é pura. Todos os princípios antigos, da época dos astecas e dos maias, ainda estão presentes. O valor cultural é muito rico. Ingredientes conhecidos no mundo todo, como o tomate, a pimenta, o chocolate, a baunilha e o abacate, têm origem mexicana;, comenta Sebastian Parasole, coordenador de artes culinárias do curso de gastronomia do Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb).
O chef e professor argentino tem uma história profissional ligada à culinária do país latino-americano. Ele trabalhou em Buenos Aires no restaurante Frida Khalo, casou-se com a primeira mulher em um restaurante mexicano e trabalhou na casa da embaixatriz mexicana na capital argentina. ;Lá, aprendi a cozinhar com uma senhora de 70 anos, que me ensinou todas as receitas. O cardápio é amplo, não é apenas taco e quesadillas. Pensar isso é o mesmo que achar que japonês só come sushi;, afirma Parasole.
Diversidade
O milho, a pimenta e o feijão podem formar a base da dieta dos mexicanos, mas há uma diversidade de produtos e variações de cada região. ;Para nós, a comida não é apenas uma forma de alimentar o corpo e sim um ritual. Usamos os mesmos ingredientes, mas cada região tem sua diversidade, seu sabor;, orgulha-se Alejandra Lapati, conselheira educativa e cultural da embaixada do México no Brasil. Os métodos e as formas de cozimento também foram mantidas através do séculos. ;A cultura dentro da gastronomia é muito forte. Ainda usamos instrumentos pré-hispânicos, como os molcajetes (uma espécie de pilão);, completa.
O chef peruano David Lechtig, do restaurante El Paso, foi buscar as raízes dessa cozinha na própria fonte. Quando abriu o restaurante, em 1995, sua ideia era ter um cardápio estilo tex-mex, cheio de influência norte-americana. Mas em 2000 ele resolveu partir em uma aventura pela tradicional culinária do México, fez cursos, conheceu chefs e passou a visitar o país pelo menos uma vez por ano, para renovar os conhecimentos. ;Queria voltar às origens. O que mais me orgulha na gastronomia mexicana é que ela soube se manter além da onda de cozinha moderna, cheia de espumas. Ela consegue se manter forte, cheia de sabores e ainda saudável;, comenta.
No México, as tortillas são feitas em panelas de pedras. O chocolate quente não leva açúcar, é meio amargo e dissolvido na água. Os tamales, enrolados na espiga de milho ou na folha de bananeira, são como irmãos da pamonha, servidos com porco ou frango e acompanhados sempre de uma salsa (molho), preferencialmente picante. Cada refeição é cheia de ingredientes milenares. ;O costume é comer uma sopa ou um caldo de entrada no almoço. O prato principal pode ser um tipo de carne, arroz, feijão e tortilla. De sobremesa, muitas frutas, quase sempre cristalizadas. À noite, tacos e quesadillas;, explica Alejandra.
O tradicional prato frijoles de olla (feijões de panela) ainda é encontrado em quase todas as cozinhas mexicanas. O feijão não é servido com caldo, como no Brasil. Ele é amassado ou cozido durante horas até formar uma pasta e ter a consistência de um purê. No norte do país, o costume é usar os grãos marrons e no sul, os pretos. ;Ele faz parte de todas as refeições, até no café da manhã. É costume comer os chamados molletes, pão com feijão em pasta, queijo e pimenta;, completa Lechtig.
Itens obrigatórios
Na época da colonização espanhola, foi criado um dos pratos mais tradicionais do México: o mole poblano, que quer dizer ;molho da cidade de Pueblo;. A receita foi feita pela primeira vez em um convento. ;Durante a visita de um bispo da Espanha, as freiras resolveram misturar elementos da cultura europeia com a indígena. Prepararam um peru com molho de chocolate, tomate, pimenta, anis, banana-da-terra e tortilla. Se arrependeram, mas na hora de servir, uma freira levou à mesa por engano. E ele adorou! Hoje é um prato-símbolo do México;, conta o chef peruano.
Já o famoso taco é uma tortilla com algum recheio, geralmente de carne ou porco. A mais comum no México é feita com milho, porém também pode ser feita com farinha de trigo. ;Misturamos o milho com água até criar uma massa. Lá, ela é feita em chapas, e isso basta;, continua Lechtig. No campo dos acompanhamentos, o guacamole se destaca. Guaca quer dizer abacate e mole, molho. A versão mais tradicional é feita com a fruta amassada, pimenta, sal e limão. Mas existem variações em diferentes regiões do país que levam tomate, coentro, alho ou cebola.
A pimenta é outro item obrigatório dos pratos mexicanos. ;Ela era usada pelos indígenas para temperar a comida. Quando os espanhóis chegaram lá, pensaram ter encontrado uma especiaria cara, mas não imaginavam que seria tão forte;, afirma o chef. Elas estão presentes até em balas, chocolates e sorvetes. ;É um ingrediente muito típico. Ela pode ter um ponto de agressividade, mas também tem sabor especial. Existe uma variedade enorme, muitas são secas e defumadas, e possuem um sabor caraterístico de cada região;, comenta Sebastian.