Diversão e Arte

Etnomusicólogo americano Jesse Wheeler estuda as relações musicais no DF

postado em 10/10/2010 19:10
Há uma década, o etnomusicólogo Jesse Samba Samuel Wheeler, 40 anos, chegou a Brasília. Norte-americano nascido em Chicago, veio para a capital a convite de dois professores da Universidade de Brasília, que buscavam alguém da área de Jesse para estudar as relações da música africana na MPB. Em 2007, ele voltou para os Estados Unidos para defender seu mestrado, na Universidade da Califórnia, sobre rock e Brasília ; trabalho que pretende transformar em livro. Atualmente, Jesse prepara seu pós-doutorado na UnB: uma cartilha sobre as relações humanas e musicais no Distrito Federal.

Como você veio parar em Brasília?

Fui convidado por dois antropólogos, José Jorge de Carvalho e Rita Laura Segato, professores de UnB, para fazer parte de uma pesquisa deles sobre a música africana dentro da música popular brasileira. Fiquei um tempo trabalhando com eles e em algum momento decidi fazer meu próprio PhD. Aí voltei para os Estados Unidos para começar, na UCLA (Universidade de Califórnia, em Los Angeles), meu doutorado em etnomusicologia. Assim que eu pude sair para fazer a pesquisa de campo, voltei pra cá. Em 2003, eu comecei a pesquisa, o trabalho de campo, fiquei também durante a redação da tese e só saí em 2007 para defender a tese. Passei uns anos lá tentando achar emprego na minha área. Mas, quando surgiu oportunidade, eu voltei.

Você tem samba no nome. Qual a origem disso?
Samba em wolof, uma língua falada no Senegal e em Gâmbia, quer dizer primeiro filho. Um amigo da minha família me deu esse nome, porque eu sou o primogênito. Eu tive contato com a música brasileira bem cedo na vida. O Brasil exporta muito essa imagem do carnaval. A música brasileira que primeiro se escuta lá fora é a bossa nova e depois o samba carnavalesco.

O que mais de música brasileira você conhecia e quando percebeu que gostava de música brasileira?

Eu pesquisava música africana, do Congo, do Senegal, do Quênia. Música brasileira para mim era bossa nova, samba, umas coisas que eu tinha aprendido na aula do Jorge, como música de Minas, algumas coisas do Nordeste. Forró eu conhecia por causa de uma coletânea que o David Byrne lançou. Eu tinha algum conhecimento, mas não era a minha praia, não achava tão importante. A minha relação com a música africana sempre passou pelo lado emocional, sentimental muito forte. Tudo que eu quis estudar tinha que me afetar, me comover e isso acabou acontecendo com a música brasileira. Eu escutei algumas músicas do Nordeste que me fizeram chorar.

Como você começou a estudar o rock feito em Brasília?

A maioria dos meus amigos era roqueiro quando cheguei aqui, então pensei em fazer algo com o rock. Um etnomusicólogo brasileiro, Rafael Bastos, de Santa Catarina, tinha me convidado para fazer um estudo lá. Numa conversa, ele comentou que nós precisávamos de pessoas para estudar coisas que não tenham a ver com o Rio de Janeiro nem com o samba. E que em Brasília eu teria a oportunidade de falar da relação da cidade com a música. Por conta do filho do Rafael, Ticho Laven;re, um dos grandes bateristas de Brasília, eu comecei a ter contato com o cenário do rock na cidade.

E como surgiu o interesse pelo underground do rock no DF?

Em 2004, eu dei uma palestra na UnB sobre o início da minha pesquisa. E conheci a Ludmila, que estava começando como vocalista numa banda chamada Poena ; hoje ela está no Estamira. Ela estudava na UnB e, por acaso, estava na palestra que eu fiz no departamento de sociologia. Também estava lá um outro cara, amigo até hoje, o Léo Teixeira, que fazia parte da banda Mayombe. Eles foram falar comigo, contar suas experiências. Depois, conheci mais pessoas ligadas ao underground: o Fellipe CDC, o Phú. Daí, em 2005, na primeira Feira de Música Independente, eu participei de um debate e discutimos o que significa ser uma banda independente. Nisso, um cara chegou aoo meu ouvido e disse para eu procurá-lo. Era o Gilmar, da banda ARD. Foi ele que me fez perceber que se eu falasse apenas sobre as manifestações roqueiras do Plano Piloto eu estaria reproduzindo essa marginalização, essa exclusão social que as pessoas da periferia sempre sofreram. E eu não queria reproduzir isso dentro da minha tese, então eu tinha que pesquisar outras coisas também. Isso abriu tantas portas que a direção da pesquisa mudou completamente. Descobri que o Gama, a Ceilândia, Taguatinga e o Guará também têm uma tradição de rock.

Ao mesmo tempo que você estudava esse cenário, você começou a fazer parte dele, com a banda X-Granito.
Tocamos em todas as cidades do DF durante vários anos. Temos cinco anos de estrada agora. Isso também fez parte da pesquisa, eu estava sentindo na pele tudo o que eu estava observando. Isso enriqueceu infinitamente a pesquisa. Deu um olhar de insider também, não apenas de alguém que tem uma intimidade com a cena, mas vê as coisas de fora. Eu estava lá no palco, tentando conseguir shows, espaço pra tocar.

O que você queria provar com o seu doutorado?
Eu queria testar a teoria, ou pelo menos uma hipótese ; que muita gente aceita hoje em dia ;, de que há uma relação entre o lugar e a arte que ali se faz. As pessoas aceitam isso, mas é muito difícil provar, apontar ligações claras. Para mim, Brasília era um lugar muito esquisito, estranho e único na minha experiência, então foi mais fácil eu perceber a identidade daqui. E amando o punk rock em geral, eu não tinha de aprender tanto sobre essa música antes de começar a pesquisa. Mas o que me interessou não foi tanto a música, mas a manifestação dessas pessoas em Brasília. E eu tento traçar essa ligação entre a cidade e o rock. Se Brasília é considerada a ;capital do rock;, tinha que ter alguma relação além de algumas bandas terem saído daqui. Por que se continua fazendo rock aqui e como a cidade interage com a música? E como os músicos formam a cidade e como a música se impõe? Essas foram as questões antropológicas.

Nesse aspecto, como você vê Brasília?

A arquitetura, o plano urbano influenciam a música. A dificuldade de conseguir espaço está diretamente ligada à intenção da cidade, aos desenhos do Lúcio Costa e ao Oscar Niemeyer. Quem conhece a história do rock de Brasília já deve ter ouvido falar de gente que se conheceu e formou uma banda depois que um passou embaixo do prédio do outro e ouviu a música que saiu pela janela. Isso só é possível numa cidade onde os prédios têm seis andares ou menos. E quando a quadra em si é feita para conter e refletir som. O azulejo, a área vazia, faz ressoar o som, como uma câmara de eco dentro da quadra. Isso mostra nitidamente como um ambiente físico pode acabar tendo influência sobre as atividades musicais. A ideia do Costa de colocar a quadra comercial colada na residencial, por exemplo. Outra coisa: por que o punk rock teria se arraigado tanto aqui? O centro do poder nacional está aqui. No começo dos anos 1980 era o fim da ditadura. Não tem nada mais gostoso, quando você é um adolescente com os hormônios à flor da pele, do quer se opor a alguma coisa e direcionar o seu ódio a essa figura de poder. E o punk era a música mais apropriada para demonstrar uma revolta política. O que se protege no underground é um espaço social de uma galera sem espaço para ser. Não é nem um espaço para tocar, é simplesmente um espaço para existir. E um lugar onde você é bem-vindo é no rock. No rock, você pode tocar sem ter 10 anos de estudo.

O que estará no seu pós-doutorado?
O que eu quero fazer é uma cartografia crítica de relações humanas, onde eu tento relatar dados musicais e não musicais para ver se a gente pode traçar umas relações. Eu fiz um modelo pequeno disso na pesquisa do doutorado e vi que realmente tem alguma coisa a ver, como a distância física e geográfica e a distância social entre as cenas. Há certos tipos de músicas que estão sendo consumidas em certos lugares na cidade, por certas pessoas. E são lugares marginais cartografica e instrumentalmente falando. Eu estou trabalhando com pessoas da geografia, da sociologia e da antropologia para engrossar esse estudo.

E o livro, quando sai?
Desde o doutorado, estou com um projeto de lançar o livro, mas faltou dinheiro. Eu quero que saia daqui a um ano no máximo. As pessoas sempre me perguntam isso nos shows e eu quero dar isso para elas como retorno. Eu me sinto mal de não ter o livro. Vão achar que eu lanço só lá fora, que eu levei as histórias deles, que eu estou me aproveitando da generosidade das pessoas. Ao contrário, eu estou tentando fazer isso para a comunidade. São pessoas que gastam energia fazendo algo que tem um retorno apenas emocional. Tudo pelo sentimento, sem esperar retorno financeiro, ser espelhado na mídia, que alguém de fora venha te dar os parabéns, nada disso. Eu agradeço a hospitalidade e a generosidade das pessoas, de não terem me deixado de fora. Sem isso, eu não teria feito o estudo, eu teria perdido o interesse. Música é música, mas são as relações pessoais que me motivam mais. São as pessoas, não a música, que me fazem querer ficar em Brasília até hoje.

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