postado em 25/10/2010 08:00
Uma série de lançamentos recentes de filmes com temática homossexual tem causado a impressão de que o cinema brasileiro finalmente parece ter acordado para as possibilidades dramáticas do tema. A saída do armário do cinema brasileiro não é recente. Mas títulos como Elvis e Madona, de Marcelo Laffite, um dos que disputaram o Festival do Rio 2010, têm trabalhado a questão de uma forma bem diferente do que acontecia em décadas anteriores.
Nele, uma lésbica, Simone Spoladore, se apaixona e engravida de um travesti (Igor Cotrim). Longe de encarar a situação como um drama, a história ganhou contornos de chanchada carioca nas ruas de Copacabana. ;Os personagens são gays, mas não acho que o filme seja. Em primeiro lugar, é preciso considerar que é uma fábula, um pouquinho descolada da realidade. A cada 10 pessoas que assistem, sete adoram, uma não liga e duas odeiam;, contabiliza Laffite. Inclusive, o cineasta já considera a possibilidade de reeditar o trailer de lançamento do filme por considerar que ainda não representa a leveza com que o tema é abordado. A fita está prevista para estrear nacionalmente em janeiro de 2011.
A homoafetividade é justamente uma das lacunas que o filme Como esquecer (em cartaz na cidade), de Malu de Moraes, tenta preencher. Na pele da professora universitária lésbica Júlia, a atriz Ana Paula Arósio sofre como o diabo para esquecer a ex-companheira Antônia. Enquanto o amigo, também homossexual e viúvo, Hugo (Murilo Rosa) tenta resgatá-la do fundo do poço levando-a para morar no subúrbio do Rio de Janeiro. Inspirado no livro Como esquecer: anotações quase inglesas, de Myriam Campello, o filme nem sequer considera o conflito de sexualidade. ;Os personagens já têm mais de 30 anos, supõe-se que já tenham essa questão bem resolvida;, explica a diretora. O esforço maior da produção concentrou-se em apresentar os sentimentos de pessoas que lidam com a perda, de maneiras diferentes. ;Acho que a Júlia é mais o estereótipo de uma mulher intelectual do que homossexual. A maneira de lidar com as perdas é que é a questão. Tentamos apresentar dramas humanos sem o uso de personagens caricatos, histriônicos. A gente fala sobre relacionamentos;, sintetiza Malu. Ano passado, o filme Do começo ao fim, de Aluizio Abranches, gerou polêmica. Menos por retratar a homossexualidade e mais porque o terceiro longa do diretor concentra o romance dos protagonistas entre dois irmãos.
Após uma bateria de entrevistas com produtores, atores e personalidades cinematográficas, a impressão da jornalista e apresentadora do Canal Brasil Simone Zucolloto é de que as mudanças ainda são tímidas. Ela é diretora da série de programas Ver e ser visto, que investiga a maneira como o cinema brasileiro representa os homossexuais e é exibida terças-feiras à 0h. ;A maior conclusão é que o cinema brasileiro até hoje não aborda o homossexual da mesma maneira que aborda o heterossexual. Em geral, o viés dramático é sempre baseado na sexualidade;, resume Simone.
Para o professor da escola de comunicação social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Denílson Lopes, os novos filmes brasileiros que tratam do tema da homossexualidade tentam, de alguma forma, iniciar um diálogo com plateias cada vez maiores. ;Os filmes são acessíveis e não têm nada de experimentais. Não se vinculam ao cinema novo, marginal ou à videoarte. São filmes que almejam um público mais amplo;, acredita o pesquisador. Porém uma outra espécie de exclusão pode estar acontecendo nas telas. ;Há toda uma construção de quase um novo herói romântico. O gay ultraeducado que é o melhor amigo da amiga heterossexual. Nenhuma pessoa é assim o tempo todo. Todo mundo tem zonas cinzas. Essa inversão da imagem negativa para positiva tem sido feita de um jeito muito simplificado. É preciso se lembrar que a figura do herói pode ser tão simplista quanto a do vilão;, critica Lopes.
Como esquecer
(Brasil, 2010, drama, 102 min; não recomendado para menores de 14 anos). De Malu Martino. Com Ana Paula Arósio, Arieta Corrêa e Murilo Rosa. Professora homossexual perde o grande amor da sua vida e decide voltar a interagir com outras pessoas. Arco Íris Liberty 1, às 15h e 19h.
MEMÓRIA
Evolução de tratamento
O professor do departamento de cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF), Antônio Moreno, autor do livro A personagem gay no cinema brasileiro, aponta a produção Aníbal Augusto quer casar (1923), de Lulu de Barros, como a primeira a tratar da temática homossexual. ;Esses filmes não existem mais. O que pude encontrar foram fotografias, sinopses e críticas da época;, explica o pesquisador sobre o mal que afeta obras brasileiras heterossexuais ou homossexuais em pé de igualdade: o descaso com nossos acervos.
A pesquisa de Moreno teve de se concentrar em filmes da década de 1960 em diante. Ligados ao movimento do cinema novo e marginal, os personagens gays, em geral, habitavam ambientes marginais e quase sempre eram vinculados a atitudes de violência. A situação não mudou muito em anos seguintes. ;Na década de 1970, se primava por um personagem dentro de um estereótipo. Era a bichona que entrava em cena, dava uma pirueta e todo mundo ria. Os amigos gays d;A rainha diaba (produção de 1974 estrelada por Milton Gonçalves) são oligofrênicos (pessoas com pouca inteligência);, resume Moreno.
;O que existe agora é uma complexidade dos personagens como indivíduos. A sexualidade não é alardeada. Com certeza, existe uma evolução de tratamento do personagem. Não é preciso colocar couraças, roupas berrantes e extravagantes. É lógico que existem comédias que geralmente trabalham a questão com exagero. Mas, em geral, são personagens dentro de sua complexidade, com questionamentos e reflexões que qualquer ser humano pode ter;, explicou o professor.