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Confira trecho do livro 'A dinâmica dos reality-shows na TV brasileira'

postado em 26/10/2010 07:38

Conclusão: Um gênero com vida longa

A partir da análise audiovisual de episódios da oitava temporada dos reality-shows ;Big Brother Brasil; e ;O Aprendiz;, este livro procurou detectar estratégias traçadas, por parte dos produtores e dos exibidores do programa, para tornar familiar um gênero novo, ainda em consolidação na televisão aberta brasileira e, conseqüentemente, conquistar a audiência. Apesar de se tratarem de programas com temáticas diferentes - um com foco maior na convivência pessoal e outro no desempenho profissional dos candidatos - observou-se a utilização de várias estratégias comuns. As diferenças aparecem, no entanto, na ênfase com que cada estratégia é utilizada e nos objetivos da incorporação destes elementos à estrutura do reality-show.

Identifica-se, em primeiro lugar, a legitimação de valores hegemônicos da sociedade brasileira nos programas em análise. A referência a valores, instituições e produtos culturais hegemônicos nos dois reality-shows tem como objetivo promover a identificação imediata do telespectador com estes novos produtos. A partir do conceito de hegemonia desenvolvido por Raymond Williams [1], como ;um
processo social vivido; na totalidade e como um complexo predominante de experiências, valores, significações, relações e atividades que sofrem limites e pressões, percebe-se a dupla função desta identificação com elementos hegemônicos: minimizar os riscos
decorrentes da inovação, evitando a incorporação de elementos residuais ou emergentes, que nem sempre seriam aceitos pelo público; e lidar com valores já consolidados na sociedade brasileira, principalmente quando se referem a temas controversos como sexo e
namoro, ou à familiaridade com produtos culturais.

A identificação com valores hegemônicos opera de maneira diferente nos dois programas. No ;Big Brother Brasil;, os valores evidenciados dizem respeito ao comportamento individual dos participantes. Por isso, estão mais sujeitos a limites e pressões da sociedade, que muitas vezes são ;antecipados; pela emissora que produz o programa, não por acaso detentora, há quase 40 anos, de uma posição hegemônica no universo da televisão aberta brasileira. Temas como sexo, namoro, homossexualidade e racismo são tratados a partir de parâmetros conservadores, mesmo que haja pressões, por parte dos participantes da competição, para que atitudes mais liberais sejam permitidas. Antes de se balizar pela vontade dos concorrentes, a emissora leva em conta a postura do telespectador médio. Por isso, há restrições a ousadias textuais e audiovisuais.

Em algumas questões, como o consumo de álcool e o uso de "palavrões" como linguajar cotidiano, estes parâmetros não estão claros. O consumo de bebida alcoólica aparece em diversos momentos do programa, mas as conseqüências do exagero na substância são mostradas com menos freqüência. Em relação à linguagem, o uso de alguns palavrões é tolerado e outros são ocultados do telespectador. Conclui-se, portanto, que estes são itens nos quais os limites e pressões ainda não resultaram em uma posição definida pela emissora hegemônica.

Já no caso de elementos como a valorização da juventude e da beleza, a abordagem feita pelos reality-shows em análise reflete o tratamento
dado pela mídia hegemônica a estes temas, com regras e exigências por vezes distantes da maior parte da população brasileira, mas que são assimiladas como ideais a serem alcançados. Basta observar que, nos dois programas, de 30 concorrentes (14 em ;Big Brother Brasil; e 16 em ;O Aprendiz;), só foi selecionado um negro, não havia participantes das classes mais baixas e a maioria era das duas maiores metrópoles do país, São Paulo e Rio de Janeiro. Além disso, o perfil estético dos participantes ; de maneira mais rígida em ;Big Brother Brasil; do que em ;O Aprendiz; ; correspondeu aos parâmetros desta mídia hegemônica.

Temas que provocam constrangimento ao serem tratados na sociedade em geral, como o racismo, também são abordados de maneira velada no ;Big Brother Brasil;. Do mesmo modo, uma temática que incorpora, por vezes, estereótipos criado tanto neste país como no exterior, como ;brasilidade; , é valorizada, durante o reality-show em questão, também com base em idéias pré-concebidas e muitas vezes distantes da realidade. A exposição de todos estes valores é feita sem dar espaço para questionamentos, reproduzindo-se exatamente os pontos de vista
das classes sociais hegemônicas, sob uma ótica freqüentemente conservadora.

A recorrência a estereótipos e ;modos de vida; importados aparece, com muita ênfase, em ;O Aprendiz;, já que neste reality-show, a maior
parte dos valores ressaltados pertence ao chamado ;mundo dos negócios;. Parâmetros globalizados influenciam desde a seleção de
imagens (ocultando-se, por exemplo, as paisagens brasileiras que evidenciam a pobreza do país) até o discurso da equipe que comanda o
programa, no qual sobressaem as palavras em língua estrangeira e as comparações também com modelos exteriores à nossa sociedade. O mesmo
se aplica à análise do desempenho dos participantes, baseada na maior parte das vezes num ;mundo dos executivos;, importado dos grandes
centros financeiros mundiais, que reforça preconceitos e não leva em conta as diferenças entre países, culturas e sociedades.

Ao examinar a legitimação de valores nos dois programas, portanto, percebe-se uma contradição entre as regras dos novos formatos (e do
gênero reality-show em particular), de um lado, e a prática das adaptações feitas pela televisão aberta, de outro. Apesar de a
literatura sobre o novo gênero salientar que existem cláusulas contratuais que garantem uma margem de adaptação local do produto
globalizado, o que se vê, na prática, é uma adaptação feita com base em parâmetros globalizados. As marcas locais se restringem aos
valores que coincidem com os valores hegemônicos trazidos do país de origem do reality-show ou a valores importados que são reprocessados
pelas classes sociais hegemônicas do país.

Tal contradição pode ser comprovada, também, na legitimação feita, durante os programas, de produtos culturais supostamente conhecidos do
grande público. Esta valorização também tem o intuito de concretizar a familiaridade do programa com o público e obter retorno de audiência
para a emissora. Especificamente no ;Big Brother Brasil;, as referências ao cinema, à música, ao carnaval e ao futebol, além de uma
auto-referência à televisão, muitas vezes espelham valores hegemônicos: o cinema ao qual o programa se refere durante toda a
temporada é o hollywoodiano e a música popular é a dos nomes já consolidados pela indústria multinacional. Mesmo o carnaval e o
futebol, manifestações geralmente ligadas à cultura brasileira, merecem abordagens hegemônicas: o carnaval, nas referências do
programa, se resume ao desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro e o futebol, aos grandes times que participam do Campeonato
Brasileiro. Não há espaço para produtos culturais alternativos, como filmes independentes estrangeiros ou produtos brasileiros, assim como
para a música produzida fora das grandes gravadoras, manifestações carnavalescas de outros estados ou o futebol das pequenas equipes.

Pelo fato de ;O Aprendiz; se propor a abordar exclusivamente o ;mundo dos negócios;, há referências apenas pontuais a produtos culturais.
Mesmo assim, a lógica é a mesma que no ;Big Brother Brasil;. Em uma prova, a premiação é assistir a um show da dupla sertaneja Zezé di
Camargo & Luciano, artistas já consagrados pela mídia hegemônica. Em outra, os participantes assistem a um show de um cantor pouco
conhecido do grande público, mas que é amigo e produtor do CD gravado pelo apresentador do programa.

A análise dos programas mostra ainda que a estratégia de tentar conquistar o público para o novo gênero passa também pela referência
maciça a duas instituições hegemônicas: a família e a igreja. A abordagem de cada tema tem objetivos específicos nos dois
reality-shows em análise. A família merece maior ênfase nos dois programas. Em ;O Aprendiz;, a intenção é explicitar o contraste entre
a vida pessoal e a vida profissional, expostas como se tivessem valores incompatíveis. As referências familiares serviriam, então,
para atenuar a impessoalidade e a racionalidade do ;mundo dos negócios;. Já no ;Big Brother Brasil;, a própria concepção do programa
incorpora elementos da instituição familiar, como a casa sendo o centro das ações e decisões. Neste reality-show, a família também
opera como instrumento de limite a comportamentos supostamente transgressores, como os excessos de liberdade física (exposição do
corpo), liberdade sexual ou consumo de bebida alcoólica, ressaltando, assim, o caráter conservador da instituição.

As referências mais freqüentes à igreja aparecem no ;Big Brother Brasil;. Podem ser analisadas como uma estratégia individual, de cada
participante, para conquistar o público. A legitimação da religiosidade hegemônica no país, ligada ao ramo judaico-cristão, traz uma carga de valores associados pela média dos telespectadores à nobreza de caráter e a atitudes positivas em relação à coletividade, por exemplo. Como os concorrentes sabem que estão sendo julgados pelo público ; que, semanalmente, vota pela eliminação de um participante ; apegam-se, muitas vezes, a referências sabidamente valorizadas pela audiência, como a prática do Cristianismo. O desligamento entre o plano pessoal e o plano profissional operado por ;O Aprendiz; faz com que haja somente uma referência à religiosidade, quando um candidato porta uma Bíblia, mas a intenção é a mesma que em ;Big Brother Brasil;: justamente o participante de personalidade mais criticada pelos outros competidores, acusado de mau-caratismo e outras características negativas, expõe sua ligação forte com o mundo religioso.

Além da identificação das estratégias de emissoras e produtores na incorporação de elementos hegemônicos (valores, instituições e
produtos culturais) da sociedade brasileira para alcançar a conquista da audiência, esta pesquisa procurou analisar como se dá a ancoragem
do gênero reality-show a gêneros televisivos mais antigos e, por isso mesmo, bastante conhecidos do grande público. Esse resgate é apontado pela literatura como uma das características do formato ;Big Brother;, mas a análise dos programas também aponta esta prática, mesmo que em menor escala, em ;O Aprendiz;. Cosette Castro [2] faz a ressalva de que, atualmente, ;já não há um gênero puro de narrativa de ficção em TV, pois ela está impregnada de outras narrativas e da realidade;.

Detectou-se, em primeiro lugar, que o gênero mais utilizado para esta ancoragem é a telenovela, o gênero hegemônico da televisão aberta nos últimos 40 anos, que atinge todas as classes sociais do país e tem boa aceitação também no exterior. As referências às telenovelas estão
presentes nos dois reality-shows. A estratégia de ancoragem a gêneros antigos é operada de maneira mais efetiva pelo ;Big Brother Brasil;,
que, além da telenovela, se vale de gêneros como os programas de auditório, os humorísticos, os desenhos animados, os programas para
jovens e os programas de entrevistas. Em ;O Aprendiz;, além da telenovela, o outro gênero utilizado para tornar o programa reconhecível perante a audiência é o game show, jogo de perguntas e resposta, outro gênero consolidado na televisão aberta brasileira. Nos
dois programas, esta ancoragem aparece tanto nas referências audiovisuais quanto na narrativa utilizada em diversos episódios dos
programas.

A estratégia de ancorar o novo gênero em elementos do passado televisivo - que poderia ser analisada como uma apropriação da herança coletiva dos telespectadores da televisão aberta brasileira, a ;processualidade histórica comum; de que fala Raymond Williams [3] -
tem outro modo de ser concretizada nos dois programas analisados, por meio da utilização de recursos audiovisuais. Elementos gráficos como
tarjas, letreiros e vinhetas, herdados do gênero jornalístico, buscam dar informações adicionais sobre os programas ao público e, em alguns
casos, aproximá-lo emocionalmente do reality-show (quando se utiliza, por exemplo, um medidor de batimentos cardíacos ou um detector de
mentiras em momentos de tensão). Recursos de intervenção na imagem, como o aumento ou diminuição da velocidade, o uso da câmera infravermelha, a edição que insere mais de um quadro na mesma tela ou em ritmo de videoclipe quebram a monotonia do monitoramento constante das câmeras (no caso do ;Big Brother Brasil;) e da repetição de procedimentos no cumprimento das tarefas (no caso de ;O Aprendiz;). O uso dos recursos audiovisuais, no entanto, está ligando a valores diferentes nos dois programas. Em ;Big Brother Brasil;, a utilização maciça da tecnologia audiovisual está relacionada à valorização da juventude e de seus gostos (um deles é a atração pelas novidades tecnológicas). Já em ;O Aprendiz;, a valorização da tecnologia reproduz o papel do desenvolvimento técnico no ;mundo do trabalho; e sua ligação com atributos como eficiência e necessidade de atualização constante. As próprias técnicas utilizadas oferecem significados diferentes para o público: a câmera infravermelha, em ;O Aprendiz;, revela imagens em ambientes escuros, pouco acessíveis para os equipamentos convencionais; já em ;Big Brother Brasil;, ela tem a função de explicitar ao público que as imagens exibidas por meio desta linguagem não devem ser mostradas de maneira explícita, por causa do conteúdo íntimo (principalmente cenas de nudez ou sexo).

Apesar de o gênero reality-show ter estreado na televisão aberta brasileira há apenas nove anos, pode-se observar, a partir da análise
dos dois programas que são objeto deste livro, que já existem características comuns ao gênero, mesmo que, dependendo da natureza do programa, haja adaptações. O acompanhamento de alguns episódios das edições 2008 dos dois reality-shows permite identificar, por exemplo, a quebra da separação rígida entre ficção e realidade. Mais do que isso, o gênero provoca a relativização do conceito de realidade, já que os participantes sabem que estão sendo observados (com diferenças na intensidade da vigilância entre um e outro programa) e avaliados (pelo público, em um caso, e pelo apresentador e seus conselheiros, no outro). Há uma perda evidente de naturalidade por parte dos concorrentes do jogo ; é difícil saber, a priori, quem está representando um personagem ou explicitando as características da
própria personalidade. Ao mesmo tempo, a edição de imagens reforça os perfis estabelecidos pela produção do programa para cada participante, teoricamente com base nestas características pessoais. Situado, a princípio, no meio do caminho entre o documentário (registro das atitudes de um grupo de pessoas em um espaço e um tempo determinados) e a ficção tradicional, o gênero reality-show não pode ser
classificado com base nas definições históricas de ficção e realidade.

Do mesmo modo, ao promover a quebra da separação entre informação, entretenimento e publicidade, principalmente entre os dois últimos, o novo gênero demonstra um fôlego comercial difícil de ser acompanhado por gêneros mais tradicionais. Rebusca o merchandising tradicional da ficção, que depende de uma combinação entre o produto a ser vendido e o enredo. Inverte esta relação: as tarefas dos participantes são criadas a partir dos produtos e alguns concorrentes tornam-se garotos-propaganda, exibindo roupas com as logomarcas das empresas. Nos dois reality-shows analisados, os limites anteriores da publicidade dentro dos programas são ampliados, com um reforço duplo: os mesmos patrocinadores que anunciam no intervalo comercial do programa aparecem durante o episódio, nas inserções de merchandising.

Observa-se também a relativização de três características exploradas pelas criadoras do formato e pelas emissoras que exibem o programa
como atrativos para o gênero: o confinamento dos participantes, a perda de privacidade deles ao entrar no jogo e a interatividade com o
público. São elementos adaptados a cada tipo de reality-show, mas que, no conjunto, consolidam uma relação diferente entre o telespectador e
o conteúdo que está sendo veiculado pelo gênero. Acostumado a torcer pelo mocinho ou pelo vilão das telenovelas, o público tem a chance de
se envolver com personagens reais e se espelhar nos participantes da competição. No ;Big Brother Brasil;, adicionalmente, o público pode
observar os concorrentes em situações da vida privada não exibidas anteriormente pela televisão aberta brasileira, além de interferir no
andamento do programa, ao eliminar semanalmente um candidato.

Esta relativização, além da quebra de paradigmas dominantes na televisão aberta brasileira (divisões ficção/realidade e
entretenimento/publicidade/informação), se traduz na consolidação de um amplo potencial, por parte dos novos formatos e, especificamente,
dos reality-shows, de serem reeditados continuamente. Apesar de atenderem a parâmetros pré-determinados pelos produtores estrangeiros e manterem uma identidade visual e uma constância nas regras das competições, as várias edições de um mesmo programa apresentam novos personagens (participantes selecionados a cada temporada), e, conseqüentemente, novos enredos e desfechos. Calcados no desempenho e na empatia dos competidores anônimos, os programas tornam-se atraentes para o público mesmo em meio a repetições na estrutura do jogo e na narrativa audiovisual, porque cada conjunto de concorrentes imprime sua marca exclusiva à competição.

O sucesso das estratégias audiovisuais implementadas pelas emissoras que fazem a adaptação local dos novos formatos e, particularmente, dos reality-shows, pode ser medido, por exemplo, pelo registro de participação do público por meio dos canais de interatividade. A final
da edição 2008 do ;Big Brother Brasil;, por exemplo, teve 76 milhões de votos para eleger o vencedor da competição. A última transmissão da
temporada 2008 de ;O Aprendiz; marcou picos de audiência de 21 pontos, índice alto para a Rede Record, que oscila entre o segundo e o
terceiro lugar em audiência entre as redes brasileiras de televisão aberta. A busca constante por elementos que concretizem a
familiaridade do público com este gênero televisivo e a ênfase em valores hegemônicos, ligados às camadas mais altas da sociedade,
constroem, portanto, uma identificação do telespectador com os reality-shows, programas que,mesmo pertencendo a um gênero que ainda
não completou uma década de exibição no país, parecem ter fôlego para mais alguns anos de sucesso.

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