postado em 31/10/2010 06:01
Em vez da tradicional cortina de veludo vermelho, uma lona se abre e o espetáculo começa. O palco italiano (tradicional) dá lugar ao chão pisado das ruas, entrequadras e feiras. No meio da encenação, um helicóptero desliza, ruidoso, no céu. Um cachorro atravessa o espaço cênico, desviando dos atores. Gente chega, dá risada, interage, vai embora. No teatro de rua não há poltrona, não há porteiro, nem lanterninha. Só o artista, o espectador e as vibrações da cidade ao redor. Apesar dessa integração direta com quem circula pelas vias públicas, o gênero ainda se manifesta de forma tímida no Distrito Federal, ao contrários dos grandes centros do país, como São Paulo. Muitas companhias de teatro flertam com o gênero e fazem trabalhos pontuais para encenação em espaços abertos, mas logo voltam aos palcos de salas fechadas. De todas elas, a trupe que transformou em bandeira a baderna engajada e colorida das ruas foi o Esquadrão da Vida.
A conquista da audiência, no entanto, exige esforço redobrado. ;Na rua, as pessoas não vão parar para te ver. Elas passam e topam com o espetáculo, por acaso. Se não for bom, vão embora. Não têm nenhuma obrigação de ficar;, observa Maíra Oliveira, atriz e diretora da companhia, que assumiu a empreitada depois da morte do pai e fundador do grupo, Ary Para-Raios. Por isso, o Esquadrão se apoia em uma estratégia testada há 30 anos, que já se revelou eficiente: a tríade formada pela acrobacia, a música e a exuberância das cores. ;Os espetáculos têm essa característica mambembe, o que chama muita atenção em espaços abertos;, revela Maíra.
Além do capricho na preparação da voz, que precisa ultrapassar a potência exigida dentro de um teatro, o grupo fica atento para evitar que a espontaneidade da plateia altere os rumos do espetáculo. ;Uma vez, um senhor passou a peça toda cantando com a gente, era o mais animado de todos. Depois nos procurou e explicou que tinha sido palhaço na juventude;, revelou a atriz da companhia Joana Vieira, de 30 anos e uma década de serviços prestados ao Esquadrão. Participações como a desse senhor são bem-vindas, desde que respeitem o andamento da história encenada.
O empenho do grupo tem uma finalidade nobre: levar arte a quem não pode pagar pelos ingressos. ;O teatro de rua é desrespeitado no Brasil . Lutamos contra isso com nossas armas, levando os espetáculos às cidades-satélite de graça. Os pobres, os ricos e os mendigos merecem acesso à cultura;, brada o ator Vinícius Santana, há dois anos e meio fazendo piruetas ao lado dos companheiros de trupe. Mas nem sempre foi assim. Egresso do teatro tradicional, ele resistiu a deixar o chamado palco italiano, com plateia de um lado e atores do outro. ;Tem um pouco de um lugar-comum errado, o do preconceito. Me questionei se era isso que eu queria, atuar na rua, sem dinheiro, sem patrocínio. Mas fui cativado pelo grupo, pela história do Ary e também pela Maíra, que conduz o Esquadrão de maneira forte e decidida;, elogia o ator.
Delicadezas
Ele não é o único a enxergar as encenações em espaços públicos com olhos de estranhamento. ;Já vi uma peça com um ator famoso em que, no fim, ele disse que teatro de rua não era teatro. Muita gente acha que o teatro de rua não tem as delicadezas e sutilezas que a sala de espetáculo fechada permite, é visto como uma coisa pobre, o teatrinho dos palhacinhos. Mas nos aprofundamos muito no trabalho de ator;, protesta a própria Maíra.
Talvez por essa visão disseminada, pela falta de bilheteria e pela dificuldade de conseguir apoio para as produções, poucos se aventurem por essa seara. Brasília não tem tradição no gênero e a presença da filha de Ary Pára-Raios no 7; Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua, realizado em julho deste ano, em Canoas (RS), causou surpresa. A cidade nunca havia mandado representantes nas edições anteriores.
HISTÓRIAS DIVERTIDAS
O dilema de ser ou não ser, no meio da rua, nunca preocuparam a atriz do Esquadrão da Vida Joana Vieira. ;Quando vi o Esquadrão, foi uma paixão fulminante. Nem pensei muito, só queria passar 24 horas por dia fazendo aquilo;, conta. Ela conheceu a trupe durante uma oficina que Para-Raios deu a alunos de Artes Cênicas da Universidade de Brasília. A caloura procurou o fundador pedindo a reativação do grupo, que estava adormecido, e acabou sendo integrada ao elenco definitivo.
Nesses anos de giros frequentes pelo Distrito Federal, Joana, assim como os outros integrantes, cultiva as histórias mais marcantes e divertidas que encontrou. Em uma apresentação para alunos de uma escola pública, os garotos fizeram uma algazarra depois da peça e partiram para o assédio, pedindo as mulheres da companhia em casamento. Em uma quadra do Plano Piloto, o grupo enfrentou uma chuva tão forte que teve de interromper a apresentação para mover cenário e objetos para debaixo de um bloco. Com a ajuda da plateia, que não arredou pé do lugar. A tempestade pregou outra peça na companhia: debaixo de um toró, os espectadores decidiram proteger os músicos com a lona, para que os instrumentos não ficassem molhados.
Maíra, a diretora, acrescenta passagens memoráveis na trajetória da trupe, como adolescentes em situação de rua que assistiram a uma das sessões, na Praça do Relógio, em Taguatinga, e depois fizeram um arrastão para roubar quem estava por perto. Há também a história de policiais que faziam guarda nos locais das encenações e depois mandaram e-mails, emocionados com o poder da iniciativa. Houve pessoas que, ao subir as escadas rolantes de uma estação de Metrô, davam de cara com o grupo na calçada e passavam horas admirando, satisfeitas por terem ganho o dia com a surpresa. Às vezes, bêbados se arriscavam a dirigir as cenas e passavam orientações para os atores.
Mas nem tudo é gargalhada no mundo desses artistas. Antes de estrear qualquer peça nova, eles enfrentam uma rotina extenuante de ensaios, que pode chegar a cinco horas diárias, seis vezes por semana. Dias antes, visitam os lugares por onde passarão, divulgando datas e horários. Em dia de apresentação, chegam até oito horas antes do previsto, montam o cenário, fazem a própria maquiagem, concentram-se, aquecem o corpo e a voz, antes da magia começar. Cada um é responsável por lavar e fazer pequenos consertos nos figurinos.