postado em 03/11/2010 08:15
No palco, as divas do samba de Brasília: Teresa Lopes, Kiki Oliveira, Cris Pereira, Chris Maciel e Renata Jambeiro aparecem espetaculares abrindo o show Música na linha do tempo, com a canção Eram três moças bonitas. O que o público não imagina é o tamanho do aperto para que as cinco estivessem esplêndidas na hora do show. A falta de espaço no camarim diminuto da Sala Cássia Eller, na Funarte, na última sexta-feira, rendia piadas entre as garotas. "Deixa eu sair para outra pessoa entrar", grita alguém da produção. O rodízio era absolutamente necessário para que tudo ficasse pronto a tempo.
Impossível não reparar no clima mulherzinha que tornava o ambiente um pouco mais agradável. Palpites na maquiagem e retoques no figurino eram feitos pelas próprias artistas. É assim há pelo menos três carnavais, desde 2007, quando as cantoras dedicadas ao samba da cidade se reúnem para apresentações esporádicas. "Era para ser uma coisa episódica, mas recebemos convites para continuar. A gente costuma dizer que é um encontro de cinco cantoras solistas e não exatamente um coletivo", explica Cris Pereira, sobre o grupo Nós Negras. O nome marca as identidades de mulheres negras que as sambistas fazem questão de destacar mesmo em carreira solo. "Quando nos olhamos no espelho, nos perguntamos: por que não?", constata Kiki Oliveira sobre o nome escolhido.
"Somos cinco mulheres com personalidades bem diferentes", admite Renata. É preciso que a direção musical seja entregue a alguém de fora do grupo de mulheres para evitar discussões infinitas. A tarefa fica delegada ao músico Amilcar Paré. O show fazia parte do projeto didático A música na linha do tempo, que apresenta a trajetória da música brasileira e erudita ao longo dos séculos.
Repertório
Na apresentação de sexta, as homenageadas foram as cantoras Alcione, Beth Carvalho e Clara Nunes (o intitulado ABC do samba, se forem agrupadas as iniciais das cantoras) e as garotas foram recrutadas para a tarefa de apresentar o repertório das três em uma noite. "Elas tiveram uma importância grande no mercado fonográfico brasileiro. A Clara, por exemplo, foi a primeira mulher a vender 500 mil cópias de um álbum", relembra Renata, que também assina a direção geral do show.
As cantoras de Brasília admitem que colhem os frutos da geração que elas reverenciavam naquela noite. "O samba ainda pode ser muito machista, mas as coisas estão mudando", reconhece Teresa. "Hoje em dia, existem muitas mulheres atuando como compositoras e instrumentistas", acredita Cris.
MEMÓRIA
As mulheres no samba
Segundo Christiane Gottardi autora da tese Mulheres nas comunidades de samba tradicionais: luta e ressignificação, a participação feminina no samba é atrelada aos primeiros anos após o fim da escravidão no Brasil, quando as mulheres negras passaram a assumir parte do sustento da casa com bicos de vendedoras de quitutes. Muitas tias baianas abrigaram as primeiras rodas urbanas, como fez Tia Ciata, no Rio de Janeiro, e Tia Olímpia, em São Paulo. "Na década de 1920, surgem as escolas de samba tradicionais, a indústria fonográfica e o rádio formando campo propício para a profissionalização dos homens no samba. As mulheres são preteridas do processo, pois a elite branca, fortemente machista, detinha as instituições que promoviam a aceitação dos sambistas em seu universo", escreveu a pesquisadora.
Por essa época, a participação feminina ganhou uma importância maior, mas ainda com reservas. As pastoras eram as responsáveis por cantar o samba-enredo nos terreiros repetidas vezes até que a letra fosse fixada na memória dos integrantes. Se o samba não agradasse às mulheres, estava fadado ao esquecimento. Com o tempo, elas passaram a assumir funções de intérprete e até compositora. Matriarcas como Dona Zica e Tia Doca da Portela foram extremamente referenciadas dentro das escolas. Mais recentemente elas assumiram o controle total. O grupo Samba de Rainha, por exemplo, é inteiramente formado por mulheres.