postado em 12/11/2010 07:29
Você já caiu ou conhece alguém que já caiu em algum conto do vigário? Certamente a resposta é sim, pois a vigarice faz parte da sociedade brasileira desde os seus primórdios. Pelo menos é o que constatou o escritor e historiador José Augusto Dias Júnior no seu livro Os contos e os vigários - uma história da trapaça no Brasil, que acaba de ser lançado pela Editora LeYa Brasil. "Me pareceu interessante a constatação de que o conto do vigário é uma prática significativa do ponto de vista cultural: para poder funcionar, ele precisa ser plausível, bem inserido em hábitos, valores e imaginários da época em que é aplicado. Isso lhe confere representatividade histórica. É possível estudar em que acreditavam as pessoas em um momento determinado por meio daquilo que as iludia. Além disso, todo o trabalho de teatralização feito pelo vigarista profissional para levar seus golpes adiante é também algo fascinante. Com tais pontos de partida, era para mim quase que obrigatório seguir adiante e pesquisar e escrever sobre a história da vigarice no Brasil", justificou o autor.
Um ponto interessante dessa pesquisa é que poucas pessoas estranham a associação entre a imagem de um religioso, o vigário, e a enganação. E essa contradição também despertou a atenção de José Augusto Dias Júnior e serviu para que ele pudesse discutir algumas das características do mundo da vigarice. Tanto é que descobriu mais de uma versão para a origem da expressão, que não é brasileira. Segundo relatos do livro, um autor chamado Vicente Reis escreveu, em 1903, um livro chamado Os ladrões no Rio, e nessa obra, a origem estava associada a um golpe que vinha da Espanha e que estava relacionada à chegada da carta de um falso padre.
Para outro autor, Mello Morais Filho, que publicou em 1904 um livro chamado Factos e memórias, a origem era semelhante a esta, mas como parte de esquemas de engano bem mais complexos. E já para o poeta português Fernando Pessoa, que em 1926 escreveu a crônica Um grande português, a expressão derivava das artimanhas de um sujeito que nada tinha a ver com a igreja, e que se chamava Manuel Peres Vigário.
"Há dezenas de versões. E isso já é significativo, porque mostra que nas coisas que se relacionam com a vigarice, tudo parece feito na medida certa para enganar e desorientar. Eu prefiro não adotar apenas uma dessas versões. Gosto de todas elas", comenta o historiador.
Para Dias Júnior, o engano sempre fez parte da sociedade brasileira e os contos do vigário de determinada época revelam muito sobre o seu contexto cultural, e nos ajudam a entender melhor a sociedade e sua evolução. "Nos tempos do Brasil colonial, por exemplo, a expressão que nomeava tais enganos era ;8burla;. Na minha opinião, o conto do vigário é o engano próprio de um Brasil em acentuado processo de urbanização: o Brasil do século 20. Foi nas grandes e médias cidades que ele encontrou as melhores condições para se desenvolver e ser aplicado de maneira sistemática e diária. Além disso, as metrópoles proporcionam ao vigarista a oportunidade de desaparecer em meio à multidão, depois de efetivado o golpe. O conto do vigário é o engano da era industrial e da vida corrida das grandes cidades", resume.
DUAS PERGUNTAS - JOSÉ AUGUSTO DIAS JÚNIOR
O que mais lhe chamou a atenção na pesquisa do livro?
O grau de sofisticação cênica que adquiriram alguns vigaristas no seu ofício de fazer passar por real o irreal. Apenas atores extraordinariamente competentes conseguem envolver as pessoas dessa maneira. Além disso, a criatividade e a rapidez com que eles criavam novas tramas, como no caso daquele espertíssimo golpista que, em 1932, arranjou uma farda de tenente constitucionalista e saiu interior paulista afora confiscando carros, alegando que precisava deles para transportar armas e soldados. E pouco tempo depois, montou uma loja no Rio de Janeiro para vender os carros que tinha obtido dessa forma.
O que você conclui a respeito desse assunto? Afinal, o que é o conto do vigário?
O conto do vigário é uma fantasia preparada por especialistas para espoliar aqueles que se deixam levar por ela. Vicente Reis dizia que era "o caso em que os espertos se fazem de tolos e o tolo quer ser esperto". Isso significa que, na maior parte das vezes, essa fantasia fisga a vítima pela sedução: o enganado acredita que está levando vantagem em algum negócio ou oportunidade inesperada, como ocorre com o conto do bilhete premiado. Creio que a grande quantidade de golpes que funcionavam e funcionam dessa maneira diz algo sobre a cultura brasileira: sobre uma certa propensão a querer levar vantagem em tudo. Faço apenas a ressalva de que não são todos os golpes que funcionam dessa maneira: alguns deles funcionam pela intimidação, como o conto do fiscal (em que o golpista se finge de fiscal e pede propina para não multar o estabelecimento comercial).