Diversão e Arte

Autor mistura o Velho Oeste com Machado de Assis, Cervantes e Melville

postado em 13/11/2010 08:00
O jovem escritor gaúcho, Antônio Xerxenesky, de 26 anos, não vacilou. Apesar da pouca idade, se apropriou do espírito ágil dos próprios personagens e foi rápido no gatilho. Porém ao contrário dos bandidos e dos mocinhos que habitam seus contos de bang bang, Antônio sacou de seu ;coldre; literário o primeiro romance da carreira, Areia nos dentes, editado pela Rocco. O cenário não poderia ser diferente: o clássico Velho Oeste. Tudo retratado bem ao estilo faroeste spaguetti (filmes dirigidos por italianos que retratam as batalhas americanas entre xerifes e ladrões). ;O interesse veio pela minha mãe, fã de longas como O dólar furado, de Giorgio Ferroni;, conta.

Homens armados com poderosos revólveres, duelos, carteados, mariachis e um constante entra e sai pelas portas de saloons são fatores comuns entre as 144 páginas. Apesar de não conter um protagonista, Antônio revela que o truque para manter o leitor vidrado em cada uma de suas palavras é a estratégia narrativa.

A trama, ora invade o diário de um personagem, ora acompanha, concomitantemente, o pensamento de dois coubóis envolvidos em uma perseguição a cavalo, em duas colunas que dividem a página. ;Trago referências como Machado de Assis, Miguel de Cervantes e Herman Melville. Minha obra é, antes de mais nada, um pastiche, uma cruza de homenagem e sátira;, explica.

Areia nos dentes  De Antônio Xerxenesky. Editora Rocco. Número de páginas: 144. Preço médio: R$ 24.Antônio conta que o interesse pela escrita surgiu bem cedo e foi consequência da paixão pela leitura. ;Possuía uma vasta biblioteca e eu a aproveitava muito, já que tive uma infância tímida. Algo comum entre garotos quietinhos de classe média;, relembra. Outro item curioso que faz parte de seu currículo, é uma tentativa de ingressar na carreira de físico, mas que foi rapidamente deixada de lado pelo jovem escritor. ;Larguei, pois não era competente o bastante para o curso;, completa.

Agora, com o primeiro livro em mãos, o autor traça objetivos pretensiosos. Para ele, os bons romancistas sempre estragam por completo a vida do leitor. ;Apesar de tudo, escrever é fracassar, então acho que se eu ;diverti; o leitor, já foi o suficiente. E tá tudo bem;, completa Antônio, que faz questão de cutucar aqueles que classificam como infantil seu gênero literário. ;Trata-se de um preconceito bobo. Qualquer tema é propício para o desenvolvimento artístico. O que importa é a maneira de lidar com o tema;, acerta ele, bem no alvo.

TRÊS PERGUNTAS

Por que você acha que existem tão poucas obras deste tipo que se passam em solo brasileiro?

Pergunta curiosa. Os faroestes italianos, que são minha maior inspiração, eram filmados por italianos em uma cidade espanhola (Almería) e todos fingiam que aquilo era os Estados Unidos. O Velho Oeste se tornou um lugar mítico sem geografia demarcada com precisão no mapa. O Velho Oeste é como um lugar imaginário, e é lá onde se passam todas as histórias de faroeste.

Se você pudesse dar uma classificação indicativa para seu livro, qual seria a faixa etária?
Acredito que para o público adulto. A narrativa é muito cheia de idas e vindas, com seus dois eixos narrativos, então um leitor mais experiente poderá saborear mais alguns detalhes. Mas, por outro lado, recebi resposta muito positiva de leitores bem jovens. Acho que é um livro para todos, então, embora cada grupo extraia coisas diferentes do livro.

Se você pudesse escolher três pessoas para lerem sua obra, quem você gostaria que fossem?
Gostaria muito que Enrique Vila-Matas, Sérgio Sant;Anna e Rodrigo Fresán lessem. São escritores que, pelo menos nos meus sonhos, teriam chance de gostar. Já de outros escritores que admiro, como Javier Marías e Cormac McCarthy, preferiria esconder esse livro. Sinto que eu me tornaria motivo de piada para eles.

Trechos do livro "Areia nos dentes", de Antônio Xerxenesky

A NOITE TREMIA em prenúncio de tormenta. O casarão dos Marlowes era rígido e imponente, um desafio ao mundo e à vida. Líquidos borbulhavam no estômago de Martín, que vagava, todo fantasma sob o poncho escuro, pelas ruas do povoado de Mavrak. Seu rosto, alumiado de quando em quando por um relâmpago distante, era uma paisagem montanhosa. Seus olhos escondiam qualquer sinal de dúvida. Acariciar a pistola no coldre lhe fornecia uma dose extra de coragem, injetada na veia, que se punha a percorrer todo o seu organismo.

Martín Ramírez sabia seu dever.

Sentia uma presença na escuridão, vigiando-o, conferindo se ele realmente iria em frente com a missão. Martín tentava convencer-se de que seu objetivo era claro e simples. Mas "claro" não poderia de fato ser, pois quem ordenou a invasão não deixara transparentes os motivos. A outra abordagem de pensamento era se imaginar um contratado, um mercenário. Exceto que não ganharia uma moeda de ouro por isso. O melhor, que diabos, era não pensar sobre a missão. Apenas executá-la.

Quão difícil seria penetrar no escuro por aquela janela da casa dos Marlowes e chegar ao porão? Ele averiguara que Samuel e Leon Marlowe estavam no saloon do McCoy, e o estoque de uísque recém tinha sido renovado. A matriarca, por sua vez, estava em seu quarto, no segundo andar, denunciada pela luz acesa.

Por que sua mão esquerda tremia então? Por que ficar nervoso? Quais eram as chances de ser pego em flagrante na invasão? Somente se a Sra. Marlowe escutasse algum ruído e decidisse descer, pistola em mãos, para descobrir a fonte do barulho. Martín, porém, não tinha o que temer. Ele fora treinado desde criança pelo seu pai para ser sutil como a brisa. Miguel Ramírez, muito amigado que era com os índios, deixou seu filho Martín por meses junto a uma pequena tribo. Tal tribo jaz no passado, esqueletos abaixo da areia, dizimados por um grupo de pistoleiros brancos. Porém, o legado permaneceu na mente de Martín. O treinamento do silêncio.

Um toque de mão em seu ombro. Martín engoliu o grito de pavor e, ao se virar, já estava mais consciente de quem era a única pessoa que poderia ter chegado por trás despercebido.

"Pai. Droga. Você quer me matar do coração?"

"Chega de circular a casa, filho"

"Já vou entrar, pai"

"O tempo é escasso"

Seu pai escarrou no chão e retirou um cigarro de palha do bolso. Prosseguiu, com uma voz mais seca:

"Você viu o seu irmão Juan?"

"Não. Onde ele está? Em casa?"

"Acho que no saloon. Escute. Por favor, tente não comentar nada com ele"

"Esse pensamento nunca cruzou minha cabeça"

"Veja se você toma cuidado"

"Eu sou um Ramírez, pai"

"Isso não é dizer muito hoje em dia, filho"

Martín pensou em argumentar, porém os lábios não se moveram. Seu pai se afastou, e outra vez Martín se viu solitário na noite de Mavrak. Ao se aproximar da janela do casarão, analisou o pouco que via do reflexo de seu rosto. Sua pele, que era de um amarelo pardo e marcante, estava esmaecida, quase pálida. Olheiras consideráveis eram o suporte dos olhos pretos.

A casa dos Marlowes respirava tranqüila. A barra de metal que Martín colocou na fresta da janela não trouxe perturbação alguma. Ele esgueirou-se para dentro, tocando suavemente o assoalho de madeira da sala. A escuridão era completa, e os relâmpagos haviam cessado. Martín aguardou, inerte, inspirando e expirando da forma mais controlada possível até que suas pupilas dilatassem e as trevas se convertessem em algo menos intimidador. Ainda que conhecesse, de dias passados, a geografia daquela sala, seria uma tarefa árdua chegar até a escadaria no outro canto sem esbarrar em nenhum dos móveis. As silhuetas dos objetos estavam borradas. Avançou tateando o chão com cuidado. Em um repente, decidiu ousar: acendeu um fósforo entre as palmas das mãos. A estratégia provou-se inteligente. Não fosse pela mínima iluminação do fósforo, haveria derrubado um lampião que estava no piso. Quando a chama aproximou-se da base do fósforo, Martín o apagou em um sopro tímido e escondeu a evidência na bota.

O piso rangeu, audível apenas para Martín. Em dois minutos, percorreu a pequena distância até a porta do porão. Tentou abrir a maçaneta gelada, mas a porta não cedeu. Martín nunca pensou que seria fácil, todo caso. Retirou uma pequena ferramenta de destrancar fechaduras e trabalhou no escuro, tendo o tato e os mínimos ruídos metálicos como aliados. Ouviu o clique definitivo da fechadura. Testou a maçaneta. A porta abriu em um rangido esganiçado. A escuridão era completa. Tudo que Martín enxergava era o primeiro degrau de uma escadaria. Avançou um pouco e acendeu outro fósforo. Uma decepção: no final dela, havia outra porta. Praguejou mentalmente e desceu.

Martín Ramírez teve a clara impressão de ouvir, vindo de trás da porta, uma conversa abafada e, depois, silêncio. Colou oouvido contra ela para escutar melhor. Nada.

E, então, quase ficou surdo.

Um tiro perfurou a porta e o silêncio, abrindo um buraco que, por centímetros, não atingiu o cérebro de Martín. Lascas de madeira caíram em seu cabelo, e Martín esqueceu qualquer tranqüilidade, correndo para a janela de origem sem sutileza alguma, os passos fortes e barulhentos.

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