Diversão e Arte

Ana Botafogo cobra mais alma da nova geração, sem deixar a técnica de lado

Nahima Maciel
postado em 14/11/2010 07:53
Ana Botafogo já fez mais de 500 mil fouettés, um passo difícil no qual a bailarina gira corpo e perna ao mesmo tempo. E nunca cansou. Quer estar nos palcos enquanto tiver condições e forma física para dançar o repertório clássico. Para manter a forma de seu 1,60m e 45kg, faz aulas de balé todos os dias. Mesmo depois de uma lesão que comprometeu 70% do ligamento do pé esquerdo e a impediu de dançar o pas de deux final do Quebra-nozes, em Brasília no início do mês. Se não pode colocar as sapatilhas de ponta, Ana faz aula de Pilates. Primeira bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro desde 1981, e com 35 anos de carreira, se exercitar diariamente é essencial para seguir adiante. Em entrevista do Correio, a bailarina conta que não pretende parar de dançar tão cedo, evita falar de idade e comemora o fortalecimento da profissionalização da dança clássica no Brasil, embora o mercado não consiga absorver os profissionais.

A NOSSA BAILARINA

Dança clássica
Temos um movimento de dança muito grande, mas não existe campo de trabalho para os que se formam. Principalmente no balé clássico. A gente tem o Theatro Municipal, que faz o clássico puro e tem tradição com mais de 80 anos. E agora existe a São Paulo Companhia de Dança, que tem dois anos e pretende ser uma companhia clássica. Fiquei muito impressionada com toda a estrutura que eles possuem, muito boa, tem tudo para dar certo. Mas o campo de trabalho é mínimo para balé clássico. No Municipal não abrimos tantas audições porque já somos 100, é uma contingência enorme e nem todos os 100 dançam, alguns estão parando e tem o problema da aposentadoria. No Municipal o bailarino é funcionário público, o que não acontece com a companhia de São Paulo.

Saída do Brasil
Não acho que sair do Brasil seja mais necessário. O ensino melhorou muito, mas não é de qualidade em 100% do Brasil. É uma formação e a gente trabalha com o físico e precisa do tempo. Não se consegue aprender balé da noite para o dia, como acontece com televisão. Balé precisa da técnica, do amadurecimento. A quantidade de bailarinos bem formados no Brasil hoje é muito maior que há 20 anos e estamos numa safra de bailarinos muito bons.

Falta de alma
A dança ficou muito técnica. Hoje em dia tem internet, se vê o que os bailarinos fazem pelo mundo. Chegamos num ponto em que a criança só queria fazer técnica. E tem que entender que balé tem que ter alma. Seja qual dança for. Na dança clássica você tem um personagem para contar uma história, tem que ter alma. Não pode só querer contar a história da Giselle e levantar a perna, rodar com uma cara de quem está pensando o que vai fazer depois. Não. Tem que se imbuir da história do personagem. E se for um balé abstrato, contemporâneo, tem que se imbuir daquela música, da intenção do coreógrafo. A alma é primordial. Balé é arte, não é esporte. Esporte é ginástica olímpica, você vai lá para bater o recorde, para ser a melhor do mundo. Dança não tem isso. Somos artistas e cada dia é um dia. Artista vai tentar emocionar o público, essa é nossa função, não interessa se fiz três piruetas ou duas, o que interessa é se consegui chegar naquele público. A técnica vem como meio, a favor da arte, mas não é o fim.

Arte datada
A gente não pode mexer muito nos balés do século 19, essa é uma realidade. A gente tem parâmetros a seguir. A técnica melhorou e parece incrível que a gente ainda faz a mesma coreografia do século 19, que é passada de geração em geração. Alguns balés do século 20 não precisam ser datados, eles podem ter nossa cara de hoje, a não ser que sejam ambientados no início do século. Balés criados na década de 1960 são mais atuais e a gente não precisa fazer com aquela técnica da década de 1960, pode fazer com nossa observação do século 21. Fiz Tatiana de Eugene Oneguin, que é mais do início do século, mas são sentimentos que podem ser de hoje. É um balé que fala da moral da época, a mulher tinha só um amor, um só casamento, romântico ainda, não podia separar. Claro, tenho que seguir os parâmetros de moral da época, mas botei muito meu sentimento de mulher do século 21, é a decepção do amor perdido, o amor não correspondido. É um balé que me permite colocar as emoções da mulher de hoje. Apesar da temática de início de século, posso brincar e brigar com as emoções dentro de mim, mas emoções de mulher atual. Para não ser datado tem que se criar coisas novas.

Papéis cansativos
A vida toda interpretei Sílfides, cisnes, seres etéreos, seres que vovavam, fadas, meninas camponesas que são frágeis. Agora estou querendo interpretar personagens mais reais, que fazem parte do meu momento como artista mais madura. Não quero mais dançar Copélia, Bela Adomercida, papelzinho de menina, de bonequinha. Quero fazer a megera (Megera domada), a Oneguin, a Dama das Camélias. Quero fazer coisas especiais para mim que sei que vou fazer muito bem e que vou tirar mais proveito. Por exemplo o Quebra-nozes eu não quero mais fazer. Já dancei no Rio esse ano três vezes!! Copélia. A última que teve no Theatro Municipal, eu pedi para não fazer. Nunca pensei que fosse chegar a esse momento de pedir para não dançar. Mas é que quero fazer outros papéis.

Dificuldade
Dançar descalça é muito difícil. Não tenho essa prática, dancei poucas vezes na vida. O solo que mais me identifiquei de dançar descalça foi o solo Isadora, que a Norma Lília criou em homenagem a Isadora Duncan. São 10 minutos de solo e Isadora Duncan tem que ser descalça. Dançar o contemporâneo para mim é difícil tudo que seja rodar. Também não tenho essa técnica toda do descalço, o pé sua. E a bailarina tem aquilo de preservar o pé, fica sempre preocupada de machucar.

Lesões comuns
Ficar dolorido é comum no bailarino. A gente vive com dor muscular. Sobretudo se você está ensaiando um clássico e muda para o contemporâneo, ou o contrário, você fica todo doído. Lesões não deveriam ser normais quando você está preparado, não está cansado, estressado. Excesso de trabalho proporciona muitas lesões. No ano passado tive uma tendinite no quadril. Tem épocas que danço toda semana e danço balés diferentes, isso é um problema. Na última semana eu estava dançando com três bailarinos diferentes e isso me angustiava porque tinha que ter tempo para ensaiar com os três. Estava ensaiando 10 balés diferentes ao mesmo tempo. Eu estava com uma sobrecarga grande. Foi uma fatalidade com um movimento bobo.

A idade
Você não vai falar isso. Diz que a bailarina não fala de idade. Cada vez que digo que não quero mais dançar um balé é com esse espírito que falo, não quero ser rival de mim mesma. Eu faço tudo, não tem o que eu não faça. Ou vou dançar plenamente, ou não faço. Ainda danço balé clássico e para isso preciso estar muito em forma. Cada um tem um limite. Acho que tenho uma carreira bastante longa. Eu até tinha pensado em parar antes, mas as circunstâncias da vida foram me fazendo continuar. Fiquei viúva pela segunda vez, há nove anos. Quando imaginava que estava querendo parar de dançar, quando dizia que queria aproveitar a vida com meu marido, curtir, viajar, fiquei viúva. Então o que sei fazer? Dançar. A dança me tirou daquele momento tão inesperado.

Os sacrifícios
Os sacrifícios do bailarinos são opções de vida. O sacrifício é a sociabilização com seus amigos que não são da dança porque a vida de bailarino é muito exigente de horários, de ensaios. A vida da bailarina começa de manhã. Todo dia, às 10h, tenho uma aula nem que seja para acordar o corpo. Acho que cheguei tão tarde na carreira porque sempre fui muito disciplinada, não deixo de fazer aula diária, trabalho seis dias na semana. Sobretudo agora, que sou mais velha, o corpo precisa. Tenho muita energia. Se estou desanimada, pode ter certeza que algo está errado. Preciso dessa força da aula diária. Eu sei como é o sacrifício. O que mais me perguntam é quando vou parar de dançar? Há anos me perguntam. Desde que fiz 40 anos. Eu penso nisso, mas quero parar bem. Agora, nem pensar. No ano passado tive uma tendinite no quadril e parei de dançar durante três meses. O que quero é poder estar bem. A vida do bailarino é ingrata. E hoje em dia talvez seja até mais sacrifício. Se eu parar dois, três dias, a musculatura se ressente muito mais do que quando tinha 20 anos. E no balé clássico você sempre tem que parecer mais jovem do que é.

Cobrança
Não sou muito cobrada porque as pessoas se surpreendem com meu físico. Quando fiz 40 não queria mais dizer a idade porque as criancinhas iam achar que eu sou muito velha para dançar. O bailarino clássico tem a vantagem de ter um palco mais distante, uma iluminação que faz a gente parecer mais jovem. Claro que pelo físico você já vai parecer mais jovem. Vejo pelas minhas colegas de escola, que são mais amatronadas. Para dançar e estar no palco tem que ser bonito para o público, por isso acho que não vou fazer carreira té 70 anos. E enquanto poder dançar os clássicos vou estar dançando. Quero estar bem no palco.

Romantismo
Sou super-romântica, gosto de pequenos detalhes, mesmo nos relacionamentos. Tive maridos super-românticos. Sou romântica na maneira de ver a vida e no relacionamento. Sou câncer, muito família, tenho meus pais ainda, estamos sempre reunidos, hoje recebo muito na minha casa e a família toda se reúne lá. Fiquei viúva com dois anos de casamento, depois casei com um advogado. Foram momentos muito felizes, mas cortados, rápidos. Com meu segundo marido fui casada 10 anos e já se passaram nove anos que ele morreu.

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