Diversão e Arte

Carlos Reichenbach é o homenageado deste ano no Festival de Cinema

Ricardo Daehn
postado em 23/11/2010 09:46

Uma fração de herança paterna somada a trabalho, negativos velhos e à estrutura sucateada de um estúdio de publicidade resultou naquilo que o cineasta Carlos Reichenbach considera ;o passaporte para o mundo, em termos de carreira;: o longa-metragem Lilian M., Relatório confidencial (1974). Justo com esse filme que ; apresentado em 1985, em Roterdã (Holanda) ; o teria ;arrancado do ostracismo;, o diretor se vê em nova conjuntura de homenagem, hoje à noite, no Teatro Nacional, na abertura do 43; Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

Se Hubert Bals (fundador do festival holandês) o consagrou como ;o Fassbinder brasileiro; ; epíteto que o diretor gaúcho rechaça ;, Brasília, ;sem tapete vermelho, ou lado fashion;, o atrai, pela genética de formação. ;Fui da primeira escola de cinema fundada em São Paulo, a São Luiz, tendo como professor o Paulo Emílio Salles Gomes, um dos fundadores do festival e quem reaproveitou a experiência do cinema na Universidade de Brasília (UnB). Faço cinema por causa dele, que me considerava um aluno anarquista, e do Luis Sérgio Person, que detectou minha queda à direção;, conta.

Carlos Reichenbach: Glórias do passado, como a de ter sido pinçado entre 413 filmes, no aval de Bals, como ;inovador;, ecoam nas láureas atuais, como a de Amiens (França) e a de Brasília, num momento delicado, em que, depois de três pontes de safena e uma mamária, Reichenbach enfrenta sério problema de visão, aos 65 anos. ;Tenho que bombardear a laser uma coisa com nome bem high tech ; uma catarata nuclear. Se, antes, homenagens pareciam um convite à aposentadoria, agora vou logo avisando: ainda tenho muita bala no revólver;, brinca. Antes de encarar uma operação em janeiro, o diretor segue servil à tevê, uma diversão a dois palmos. ;Minha tábua de salvação, tanto contra depressão e tédio, é meu DVD. Assisto a um atrás do outro e sou totalmente a favor do compartilhamento de filmes;, diz, enquanto aguarda pela chegada (via computador) de filmes do argentino Eliseo Subiela, com quem assume identificação.

O aprendizado técnico extraído da fotografia publicitária (;onde desaprendia a dirigir;, enfatiza) foi estendido a 33 longas-metragens, mas, engana-se quem aposta em formalismo estético. ;Meu compromisso é com a liberdade de criar. Cinema, como qualquer arte que se preze, é risco. Você não pode ter medo. Daí, ter perseguido o diálogo entre popular e o erudito;, defende. Propagador de melodramas sociais, o diretor sempre se diz surpreso com o alcance de Lilian M., relatório confidencial, que, ;difícil para o publicão;, arrebatou 500 mil espectadores, ;mais do que a soma dos meus quatro últimos filmes, mais populares e acessíveis;.

Apelo democrático
A exemplo do mais recente longa-metragem, Falsa loura (2007), a prioridade de Reichenbach foi divertir as ditas classes C e D. Egresso da geração do Cinema Marginal, ;até como público;, ele deixa transparecer a saudade do período em que assistia a cinco filmes por semana, nos cinemas de rua. ;Era a diversão mais barata que existia. O ingresso custava uma passagem de ônibus e eu era muito fiel;, diz. Cinema casado com erotismo é outra constante no olhar do realizador. ;Fui um dos que fizeram a Boca do Lixo. O termo, aliás, surgiu do Audácia, fúria dos desejos (1969), no Jornal do Brasil e foi consagrado na revista Manchete, ; não posso nunca ser contra ele;, explica.

Manter o mínimo de ;má reputação; no processo criativo, por sinal, é das metas, para alguém que pretende injetar, nos futuros longas (desde já idealizados), ;um sopro de vida nesse marasmo geral que está aí;. A rebeldia é traço indissociável ao ;engolidor; de livros que, antes de amargar os 12 graus de miopia, ainda criança, contrariava as recomendações familiares, encarando leituras notívagas, à luz de velas, no banheiro. ;Minha pretensão era ser roteirista, porque minha formação é literária: sou filho, sobrinho e neto de editor. Tive muita convivência, desde a infância, com escritores. Meu pai, que perdi um dia antes de completar 14 anos, era enciclopedista e eu, um glutão. Não sou míope impunemente;, diverte-se.

Antes da identificação cinematográfica com Vittorio de Sica e ;outros pensadores libertários;, Reichenbach assume ter tido a ;cabeça feita por autores como Wilhelm Reich, por Erich Fromm e Herbert Marcuse;. ;Há um vínculo forte da sexualidade com o meu cinema, assim como há com a filosofia e a literatura ; especialmente, quando associados à ideologia da liberdade;, explica. O apelido na adolescência, em colégio interno, ;Pedacinho de Céu;, parece ecoar, diante da eterna aplicação nos estudos. ;Passei uma boa parte da vida tentando apagar a imagem de CDF, mas era impossível. Eu era vitima de bullying e daí ter virado um mau-caráter;, conclui, às gargalhadas.

Ousadia à Oswald de Andrade

Com nova cópia feita pela Cinemateca Brasileira, Lilian M., relatório confidencial (1974) ; a ser exibido, hoje, apenas para convidados ;, na visão de Carlos Reichenbach, é como se fosse o primeiro longa dele. ;O Corrida em busca do amor (1971) ainda não era o filme que, como cinéfilo, gostaria de ver. Lilian M. explora cinco gêneros diferentes. Até idealizei a produção para ser feita em blocos. É a história de uma mulher que sai da roça, com uma vida difícil. Casada com agricultor, ela nunca gozou na vida, e tem dois filhos. Chega, então, um caixeiro-viajante e leva ela para a cidade;, conta o cineasta, que adianta ter empreendido o ;trajeto natural;, defendido pelo modernista Oswald de Andrade, ; ;campo, cidade, campo;.

Com muita ousadia formal ; há de filme social a chanchada, passando por etapa musical ;, Lilian M. acopla outro princípio oswaldiano: ;É um filme meio bárbaro e nosso;. A cada homem que entra na vida dessa mulher, o filme toma uma personalidade diferente, com gênero distinto. Lilian é agente e vítima, ao mesmo tempo nas mãos deles. É um processo de libertação ; ela vai descobrindo a vida. Na verdade, o filme é uma realidade brasileira filtrada pelo meu olhar. Há inclusive um personagem alemão que financia o aparato da tortura, isso em 1974, então, tudo era metafórico;, comenta o diretor.

Na apresentação da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro (sob regência de Elena Herrera), reservada à cerimônia de abertura do festival de cinema, figuram obras usadas na trilha do filme feitas com uso de playback, fato que aguça as expectativas do diretor. ;Tinha um crítico que dizia que fazia meus filmes para exorcizar as toneladas de discos de 78 rotações que o pai dele deixou como herança. Agora, vou ouvir sem chiados;, comemora.

Elo entre o cinema de Reichenbach (em Falsa loura) e o de José Eduardo Belmonte (A concepção), a musa Rosanne Mulholland empresta a voz na narração do curta 50 anos em 5, outra atração da noite. Uma trama romântica demarca o retorno de Belmonte à direção de curtas, depois de quatro longas, entre os quais Meu mundo em perigo e Se nada mais der certo. (RD)

Os "filhos" preferidos

Filme demência (1987)
; ;Ou fazia esse filme ou metia uma bala na cabeça. Fala muito da relação com meu pai, que eu perdi muito cedo. Meu avô veio ao Brasil com a missão de instituir a primeira indústria litográfica (com impressão à pedra) e, falando de Apolo e do filho Faeonte, que teve o mitológico carro de fogo perdido, revelo o herdeiro que perde o bem de família, numa relação bem pessoal. Um dos grandes méritos foi ter encontrado espectadores que me disseram que voltaram a estudar por causa do longa.;

Alma corsária (1993)

; ;É autobiográfico, sobre minha experiência de juventude, sendo estruturado como uma carta de princípios. Nunca me despi ; em nível existencial ; tanto num filme quanto nele. Tem referências ao japonês Kenji Mizoguchi e aos filmes de Humberto Mauro, Luis Sérgio Person e José Carlos Burle. Enfim, é uma declaração de amor ao cinema brasileiro.;

O império do desejo (1980)
; ;Até hoje não entendo como tive tanta liberdade para fazer um filme tão rebelde. Imagina um filme em que, com 10 minutos, entra a frase de Pierre-Joseph Proudhon: ;Toda a propriedade privada é um roubo;. Na censura, pediram interdição total em território nacional, porque fazia ;a defesa irrestrita do sexo tribal; (risos). Foi liberado pelo tal novo recurso da Comissão Superior de Censura, mas com a tarja de espetáculo pornográfico.;

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